A Lei deve proteger os bons, sem criar precedentes para os maus

A Lei deve proteger os bons, sem criar precedentes para os maus

Por Dr. Raul Canal – Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) n. 2.865/2015, de autoria do deputado federal Lucio Mosquini (MDB/RO), que altera os artigos 188 do Código Civil e 25-A do Código Penal Brasileiro. No primeiro, o PL determina que não sejam considerados atos ilícitos os erros praticados por profissionais da saúde em situações de emergência aos quais não tenham dado causa. Na esfera penal, o PL acrescenta o parágrafo segundo ao Art. 25-A da lei repressiva para determinar que não serão consideradas culpáveis a imperícia, a negligência ou a imprudência, quando praticadas por profissionais da saúde, em intervenções necessárias, quando decorrentes de emergências, às quais não tenham dado causa.


Na prática, o PL legitima e dá respaldo ao erro profissional, desde que praticado em situação de emergência, para cuja deflagração o mesmo não tenha concorrido. Submetido à Comissão Temática Permanente de Seguridade Social e Família (CSSF), sob a relatoria do deputado federal Luiz Henrique Mandetta (DEM/MS), que é médico, o projeto foi rejeitado e seguiu para apreciação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).


Em sua justificativa, Mosquini afirma que “situações limiares, que podem levar o paciente a adquirir limitações permanentes ou até mesmo a perder a vida, demandam atendimento de emergência, que é uma forma especial de acolhimento, que tem diversas peculiaridades, se comparada à relação convencional entre pacientes e profissionais de saúde”. Assevera ainda que “no atendimento emergencial, não é o paciente que escolhe a equipe que irá ampará-lo. Além disso, nesse caso, o profissional de saúde tem de tomar decisões num curto período de tempo e, muitas vezes, executa intervenções invasivas e arriscadas, até mesmo sem o consentimento do sujeito ou de seus familiares”.


Apesar da aparente boa intenção, Mosquini denota desconhecimento prático da atividade médica e realiza uma interpretação equivocada dos dispositivos legais. Uma situação de emergência é, per se, uma situação de anormalidade e exige, portanto, atitudes e ações também anormais. O que afasta a culpabilidade em ato médico praticado em tais circunstâncias não é a ausência de negligência, imperícia ou imprudência, mas sim a não exigência de conduta diversa daquela praticada.


Por exemplo, um dermatologista que socorre um politraumatizado em um acidente de trânsito e o imobiliza, lançando mão de procedimentos técnicos de um traumato-ortopedista, mas provoca danos à vítima apesar de salvar-lhe a vida não pode ser responsabilizado, nem civil nem criminalmente. Embora não seja o profissional mais adequado para o socorro, o dermatologista agiu da maneira esperada, pois é alguém com conhecimentos gerais de medicina, sendo aquele com maiores chances de salvar a vítima. Se, todavia, na mesma situação, ele praticar condutas imprudentes e negligentes, como mudar o decúbito da vítima ou mobilizá-la de maneira inadequada, provocando-lhe, por exemplo, uma tetraplegia, o dermatologista deverá, sim, ser responsabilizado, pois qualquer cidadão com poucos conhecimentos de medicina saberia que aquela conduta não seria adequada para aquela situação.


Aprovar o PL na forma proposta pelo autor não protegeria os profissionais de boa conduta. Pelo contrário, daria margem para o acobertamento de má conduta profissional, inclusive, tornando impunes erros grosseiros com graves consequências aos pacientes. É o que alegou o deputado federal Henrique Mandetta em seu parecer contrário ao PL e que foi unanimemente aprovado pela comissão: “o projeto não beneficia bons médicos, que não são responsabilizados em ações emergenciais. Porém, maus profissionais, que agem sem cautela, em total descompasso com as normas éticas, poderão escapar da punição. Acredito que o profissional de saúde que, numa situação de anormalidade, causa dano ao paciente, se sujeita a sanções na esfera penal e cível”.


Por mais que uma situação emergencial motive a adoção de medidas emergenciais e atípicas, deve-se sempre seguir os protocolos científicos, não justificando, portanto, a adoção de medidas açodadas, imprudentes e negligentes. A emergência não autoriza que se negligencie regras cientificamente comprovadas e exigíveis do profissional mediano.


O princípio do “Risco Tolerado” configura-se em um dos princípios basilares do Direito, pelo qual apenas as situações de normalidade exigem do cidadão a conduta normal. As circunstâncias fáticas de anormalidade autorizarão o cidadão a condutas anormais, e determinados riscos são tolerados a fim de evitar riscos ou danos ainda maiores.


Na década de 1990, na Rodovia São Vendelino, na Serra Gaúcha, um médico amputou o antebraço direito de um caminhoneiro que estava preso às ferragens minutos antes de o caminhão explodir e incendiar-se, após ter despencado de uma íngreme ribanceira. Tal conduta, realizada com uma faca de churrasco e sem anestesia ou qualquer procedimento asséptico, seria condenável em situação normal, sobretudo por haver produzido na vítima dano corporal e estético de natureza grave. Todavia, naquela realidade circunstancial, mesmo sem o consentimento esclarecido da vítima, a conduta do médico foi incensurável e essencial para o salvamento do acidentado.


Seria temerário, no entanto, albergar todas as condutas imperitas, negligentes e imprudentes, afastando-se até mesmo a apuração da culpabilidade, simplesmente pelo fato de haverem sido praticadas em situações emergenciais, como pretende o PL. Isso conferiria aos profissionais de saúde um salvo conduto, autorizando-os a adotarem toda e qualquer medida que reputassem necessária, eximindo-os de eventuais erros, simplesmente com a justificativa de que estavam atendendo a uma emergência.


Isentar de culpa o profissional que erra grosseiramente, que age com negligência, imperícia ou imprudência, simplesmente pelo fato de que o fez em situação emergencial – vale lembrar que grande parte dos atos médicos são realizados em situação de emergência – seria abrir um precedente para a má práxis justificada, aumentando ainda mais a insegurança do paciente e prejudicando a confiabilidade dos mesmos nos serviços de saúde.


Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que afastar o caráter ilícito do ato de um policial em serviço que ferisse ou matasse alguém, sob o argumento de que, em ação, ele teria o direito de disparar contra qualquer suspeito, o que impediria que o policial fosse investigado e julgado. Esse cenário não protegeria o bom policial, mas, por outro lado, daria margem para que o mau policial abusasse do seu direito, atirando, ferindo e matando quem quisesse durante uma ação policial.


Melhor seria se o legislador se preocupasse em criar e aprovar leis que propiciem e garantam aos profissionais de saúde, sobretudo no serviço público, condições mais dignas e recursos materiais suficientes para exercerem eticamente a sua profissão, cuidando realmente da saúde da população, entregando-lhe serviços seguros e de qualidade. Já é o momento de o legislador brasileiro se preocupar mais com a qualidade em saúde e com a segurança do paciente e dos profissionais que tanto se expõem à escassez material, tecnológica e farmacológica da realidade nacional.


 


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