A linha justa entre a malária, o barbeiro e a gripe

A linha justa entre a malária, o barbeiro e a gripe

Durante a construção da estrada de ferro Central do Brasil, em 1907, muitos trabalhadores estavam sendo acometidos pela malária, doença parasitária febril aguda, transmitida por mosquitos. Justiniano chegou então à cidade mineira de Lassance, às margens do Rio São Francisco, para tentar conter a epidemia. Ele montou um pequeno laboratório de pesquisa em um dos vagões e instituiu medidas básicas de saneamento, como uso de mosquiteiros, isolamento de indivíduos infectados e eliminação de água parada. Levou também quinino, uma substância extraída da casca da árvore Cinchona, descoberta no Peru, no século XVII, usada para tratar a doença e precursora da atual hidroxicloroquina.


 A história tomou outro rumo quando um engenheiro da ferrovia alertou Justiniano sobre uma infestação de insetos conhecidos como barbeiros, que costumavam picar a face das pessoas, especialmente durante a noite. No laboratório, ele identificou que, dentro do intestino dos barbeiros, havia uma nova espécie de protozoário flagelado, a qual deu o nome de Trypanossoma cruzi, em homenagem ao seu mentor, o médico sanitarista Oswaldo Cruz.


 Justiniano estudou dezenas de casos da doença aguda que se seguia após a picada do barbeiro e, nas necropsias, encontrou inclusões de protozoários no coração e no cérebro das vítimas, o que explicava algumas manifestações clínicas como insuficiência cardíaca, arritmias e meningoencefalite. Em 1909, descreveu a história natural completa da enfermidade: agente etiológico (Trypanossoma cruzi), vetor (barbeiro triatomídeo), hospedeiros (gatos, saguis e outros animais silvestres), curso epidemiológico, formas clínicas e anatomia patológica. No fim das contas, viajou para controlar a malária, e voltou com uma doença inédita: a tripanossomíase americana (ou doença de Chagas).


 Alguns anos depois, antes do fim da primeira guerra mundial, em 1918, o mundo testemunhou o surgimento de uma pandemia de gripe pelo vírus da influenza. Ficou conhecida como gripe espanhola, não por ter sido originada na Espanha ou registrar maior concentração dos casos neste país, mas porque os veículos de imprensa da Espanha não acobertaram o surgimento dessa doença avassaladora, ao contrário de seus pares europeus. As estimativas são de que a gripe espanhola tenha levado oito meses para globalizar, deixado duas em cada três pessoas doentes e cerca de 30 a 100 milhões de mortes.


 O Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, abrigava quase 1 milhão de habitantes e passava por conturbados tempos de disparidades econômicas, más condições de saneamento e disseminação de moléstias infecciosas como varíola, dengue, tifo e cólera. Com grande pressão política e social, o governo convocou o agora experiente e renomado Justiniano para coordenar a campanha de saúde pública. As medidas adotadas incluíram construção de hospitais emergenciais, convocação de profissionais de saúde, adoção de estratégias de isolamento e distribuição de panfletos para alerta à população.  “Perdigotos – Que perigo! / Se estás resfriado, amigo / Não chegues perto de mim / Sou fraco, digo o que penso / Quando tossir, use o lenço / E, também, se der atchim / Corrimãos, trincos, dinheiro / São de germes um viveiro”.


 Dessa vez, o agente causador da doença não poderia ser encontrado pelos recursos disponíveis na época. A hipótese era de que fosse o micróbio da influenza, invisível e capaz de atravessar membranas e poros. Havia esperança de cura, com as pesquisas envolvendo escarro e sangue dos infectados para elaboração de soros e vacinas. Contudo, após cerca de três meses do início do surto, a incidência de casos diminuiu rapidamente e um tratamento definitivo não foi consumado. Em 1919, novos surtos de gripe começaram a surgir, felizmente com menor pujança, e Justiniano impôs quarentena aos navios e notificação compulsória de doentes, medidas que sofreram de impopularidade.


 Com inúmeros prêmios e homenagens em todo o mundo e duas indicações oficiais ao Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, nos anos de 1913 e 1921, pelo seu trabalho com a tripanossomíase americana, Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas, notoriamente conhecido como Carlos Chagas, é um exemplo de “ciência e pesquisa em defesa da vida” e de como a história se desenvolveu para a expansão de políticas e instituições de saúde sanitárias.


 Referências 


  1. SCLIAR, Moacyr. Oswaldo Cruz & Carlos Chagas: o nascimento de ciência no Brasil. São Paulo: Odysseus, 2002. ISBN 8588023245.
  2. GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist. cienc. Saúde - Manguinhos 2005, vol.12, n.1, pp.101-142. ISSN 0104-5970.  https://doi.org/10.1590/S0104-59702005000100006.
  3. COUTINHO, Marilia; FREIRE JR., Olival; DIAS, João Carlos Pinto. The noble enigma: Chagas' nominations for the Nobel Prize. Mem. Inst. Oswaldo Cruz. ISSN 0074-0276. https://doi.org/10.1590/S0074-02761999000700012.

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