A Medicina do Futuro e seus Riscos

A Medicina do Futuro e seus Riscos

É temerário tentar prever o panorama da medicina do futuro, porque se corre o risco de confundir ciência com ficção. Isso se deve, principalmente, aos vertiginosos avanços no campo da biotecnologia. Porém, esse progresso tecnológico não pode apenas se voltar para as descobertas mais fantásticas, mas se aproximar de uma política de integração segundo a qual o ser humano interaja com um sistema solidário e responsável de saúde.


Sabe-se que o grande desafio no futuro estará no campo das doenças genéticas, e espera-se que muitos desses distúrbios sejam diagnosticados mesmo antes de uma proposta terapêutica, no instante em que se tenha decifrado por completo a cartografia gênica do homem. Enfim, saber como os genes trabalham na saúde e na doença.


A terapia gênica, mediante a introdução de “genes terapêuticos” que corrigem erros, já é um meio que começa a se desenvolver e dar resultados. Daqui a alguns anos, a medicina certamente será marcada por intervenções específicas na fisiopatologia molecular das enfermidades a partir desses genes chamados “terapêuticos”, mas tal progresso dependerá muito da química, da física e da engenharia genética. Nesses próximos 20 anos, já seria um passo extraordinário se pudéssemos desvendar, por exemplo, os mistérios da esquizofrenia, essa doença que acomete milhões de pessoas no mundo inteiro.


Do cruzamento da genética com a farmacologia está surgindo uma nova disciplina: a farmacogenética. Sua proposta é identificar que pontos específicos do genoma de uma pessoa são responsáveis pela resposta a um fármaco, avaliando, assim, se um indivíduo responderá ou não a determinada terapia. Isso permitirá que no futuro sejam preparados medicamentos de acordo com o material genético de cada paciente.


Há anos a comunidade científica internacional discute as possibilidades, os riscos e os aspectos éticos que envolvem as pesquisas com células-tronco de embriões humanos. Em geral, os que as defendem afirmam que essas pesquisas podem trazer resultados positivos no tratamento de muitas doenças, algumas ainda incuráveis. Em contrapartida, os que criticam o uso de embriões nessas pesquisas alegam que as células-tronco medulares adultas e as do cordão umbilical poderiam obter os mesmos resultados, sem objeções éticas. Mesmo assim, todos admitem que esses resultados não são imediatos e que muito se tem a fazer até que se institua de vez uma terapêutica segura em favor do ser humano.


Outra mudança também se nota no comportamento dos pacientes. Em breve, eles deixarão de ser espectadores das suas consultas e passarão a ser questionadores das propostas de tratamento que lhes são oferecidas. As informações disponíveis aos pacientes são tantas que hoje eles não cogitam mais uma segunda opinião, mas todas as opiniões às quais tenham acesso.


O aumento da capacidade de armazenamento de dados e os avanços do sistema de telecomunicações já estão revolucionando a forma de prestar serviços de saúde. O uso de microcomputadores portáteis que podem coletar e enviar informações a uma base remota já é uma realidade em várias áreas da ciência e, nos próximos anos, se disseminará na área de saúde.


A revolução das telecomunicações começou com a era espacial e hoje é lugar-comum na nossa vida. É uma tecnologia tão consagrada que quase não percebemos mais a sua presença. À medida que os custos que envolvem o uso de satélites diminuíram, as suas aplicações foram ficando cada vez mais corriqueiras. Um exemplo claro é o seu uso pelas instituições bancárias.


Pensamos na medicina do futuro como uma área em que o telemonitoramento estará cada vez mais presente, e todos – médicos, instituições e pacientes – estarão interconectados 24 horas por dia. Desse modo, a saúde será uma indústria da informação, entendida como o tratamento inteligente de uma série de dados.


A telemedicina, mesmo de forma tímida, já existe e funciona. Inúmeros têm sido os recursos tecnológicos usados pelos médicos, a exemplo do fax, do telefone, da videoconferência e do correio eletrônico, como forma de atender e beneficiar seus pacientes. Já é possível, hoje, detectar infartos por exames ao telefone em tempo real, receber a transmissão de sinais vitais do paciente pela internet e realizar, com especialistas internacionais, cirurgias por videoconferências. No entanto, dentre as profissões técnicas, a medicina é a que até agora menos se beneficiou da tecnologia e a que menos se esforça nesse sentido, embora seja a que mais tem a se beneficiar. Para mudar esse quadro, o médico terá de modificar substancialmente sua formação, sua qualificação e seu próprio comportamento profissional.


Os desafios do futuro incluem:


  • Monitorar permanentemente a qualidade do atendimento prestado
  • Educar a população para uma melhor qualidade de vida
  • Estabelecer sistemas eficientes de comunicação online entre os vários prestadores de atenção à saúde, de modo que as intervenções possam ser realizadas em tempo real, minimizando os custos
  • Identificar na população geral os pacientes que apresentem uma combinação de fatores de risco, de modo que as intervenções sejam dirigidas seletivamente em alguns grupos
  • Caracterizar melhor e registrar as particularidades de cada paciente, de forma que a biodiversidade seja respeitada e as pessoas não sejam tratadas apenas pelo rótulo da patologia, seguindo-se protocolos preestabelecidos, mesmo que fundamentados nas chamadas “evidências científicas”.

Os grandes riscos da medicina estarão na chamada medicina preditiva, que propõe antever o surgimento de doenças como consequência de uma predisposição individual, tendo como meta a recomendação da melhor maneira de preveni-las. Como se pode imaginar, essa vertente da medicina levanta uma série de questões, tanto pela forma anômala de sua relação médico-paciente, como pelo risco de comprometer a privacidade do indivíduo ou de submetê-lo a constrangimentos e discriminações.


Não é exagero imaginar que, em breve, as companhias de seguro considerarão a pele branca de um indivíduo como um fator encarecedor das apólices apenas pela maior vulnerabilidade ao câncer de pele. Com a possibilidade cada vez maior de reconhecimento no âmbito molecular, chegará o tempo em que o perfil do DNA indicará propensão a uma doença cardíaca ou ao alcoolismo, fazendo com que essas companhias discriminem determinadas pessoas, aumentando valores ou, até mesmo, recusando adesões.


A saúde e as liberdades individuais representam, em um estado democrático de direito, os bens mais fundamentais. Sendo a saúde um bem irrevogável e indispensável, cabe ao Estado sua garantia e seus meios de organização. A liberdade, por sua vez, é um ganho consagrador da cidadania e da luta dos povos.


Por isso, é necessário minimizar o sofrimento e o dano causados por serviços de assistência à saúde que não levam em consideração a liberdade individual e desprezam o senso crítico dos pacientes, perpetuando um paternalismo secular de proteção.


Não há como existir ainda a chamada “superioridade de juízo”.


A sociedade livre e organizada pode e deve contribuir com essa mudança, embora não possa se amparar apenas na garantia da autonomia e no direito ao consentimento livre e esclarecido, documento que por si só não é suficiente para assegurar uma relação mais respeitosa ou isentar possíveis culpas. Do contrário, corre-se o risco de se criar uma “medicina contratual” de bases falsas.


Se não levarmos em conta a autonomia das pessoas, qualquer conceito de saúde se tornará ambíguo e ficará difícil para o poder público impor regras sanitárias, simplesmente porque tanto a saúde como a doença exigem explicações.


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