A vida é curta, a arte é longa

A vida é curta,


A arte é longa,


A ocasião fugidia,


A experiência enganadora,


O julgamento difícil.


M.S.C, sexo feminino, 86 anos, branca, professora aposentada, natural da Bahia, é trazida ao ambulatório da Clínica Médica pelo filho. Ela deambula, mas é trazida em cadeira de rodas porque, há algumas semanas, apresenta tonteira, confusão mental e náuseas. Ela sofreu algumas quedas recentemente e agora teme caminhar. Há aproximadamente 15 dias as náuseas se exacerbaram e ela mal se alimenta.


Uma das preocupações expressadas pelo filho é de que a paciente está ingerindo atualmente mais de 12 comprimidos por dia. Ela já foi a vários especialistas e tem numerosas receitas que incluem anti-hipertensivos (4 fármacos diferentes), hipoglicemiantes orais, anti-inflamatórios não esteroides, paracetamol e lorazepam. Na sua última consulta com o cardiologista, foi acrescida metoclopramida para as náuseas, mas o quadro persiste.


M.S.C. é hipertensa de longa data. O diabetes melito foi diagnosticado há 5 anos. Faz uso de metformina e, recentemente, seu endocrinologista aumentou a dose e acrescentou glibenclamida. Nunca fumou. Etilista social. Gesta II, Para I. Aborto I (espontâneo). Laqueadura tubária aos 42 anos de idade. Menopausa aos 50 anos. Não fez terapia de reposição hormonal. Faz uso de lorazepam há anos, desde a morte do cônjuge.


O filho acrescentou que a paciente teve alguns episódios de hipoglicemia durante o dia (constatadas por glicemia capilar) e hipotensão (a vizinha é enfermeira e aferiu a PA).


A paciente tem aspecto apático, mucosas discretamente ressecadas, discreta palidez cutaneomucosa e consegue se levantar com dificuldade da cadeira de rodas. Não apresenta marcha antálgica.


Lúcida, orientada no tempo e no espaço, embora responda com certa lentidão às perguntas. Face encovada. Pele ressecada com discreta descamação generalizada. Manchas senis na face e nos membros superiores. Temperatura axilar = 36,4ºC.


Dentes em razoável estado de conservação. Prótese dentária superior.


PA = 105/60 mm Hg. RCR 2T. FC = 88 bpm.


Pulmões limpos.


Abdome flácido, sem sinais de irritação peritoneal, mas aumento difuso da peristalse e desconforto à palpação.


MMII com veias varicosas de pequeno calibre e algumas equimoses em decorrência das quedas. Não há micose interdigital. Teste do monofilamento dentro dos limites da normalidade.


Glicemia capilar 70 mg/dL (ingeriu uma maçã raspada há mais de 2 horas).


ECG com ritmo sinusal.


Dados que chamam a atenção:


1) Nível tensional baixo


2) Glicemia capilar baixa


3) O quadro nauseoso não melhorou com a metoclopramida


4) Superposição de princípios ativos com nomes comerciais diferentes (AINE, analgésicos, anti-hipertensivos, hipoglicemiantes orais).


Ponderação


Os adultos mais velhos fazem parte de um dos segmentos de crescimento mais rápido da população e o uso de medicamentos por essas pessoas é significativo. Os profissionais, muitas vezes, relutam em trocar a medicação prescrita por outros profissionais e isso aumenta o risco de “cascatas de prescrição”. A farmacocinética e a farmacodinâmica mudam com o envelhecimento e poucos estudos são realizados em idosos.


Tanto o lorazepam quanto a metoclopramida e a glibenclamida aparecem nos Critérios de Beers e na lista STOPP (Screening Tool of Older Person’s Prescriptions).


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Adotei a abordagem STOPP:


  • Revisei as várias receitas e suprimi as redundâncias. Em três receitas de especialistas diferentes havia anti-inflamatórios não esteroides – racionalmente, escolhi um e suspendi os outros dois. Suspendi também o paracetamol
  • Solicitei à paciente e ao seu filho que fizessem um diário das glicemias capilares diárias. Como as náuseas surgiram pouco depois do aumento da dose de metformina e com o acréscimo da glibenclamida, suspendi a glibenclamida e retornei à dose anterior de metformina
  • Conversei sobre a necessidade de suspender gradativamente o lorazepam – a paciente ingeria 1 mg duas vezes ao dia. Expliquei que, nas primeiras semanas, poderia ocorrer insônia, mas também expliquei os efeitos colaterais (tonteira, sonolência, efeitos mais prolongados em pessoas com mais de 65 anos de idade, episódios de queda)
  • Visto que a metoclopramida não melhorou as náuseas e pode desencadear parkinsonismo, também suspendi seu uso
  • Como ainda não fora feita orientação dietética, fiz recomendações gerais e encaminhei à nutricionista para otimizar o manejo do diabetes melito e da hipertensão arterial.

A paciente retornou após uma semana e apresentava recuperação moderada das náuseas e da tonteira. Seu diário de glicemias e níveis tensionais mostrou que a reorganização da medicação reduziu os episódios de hipoglicemia e hipotensão.


A paciente permaneceu em acompanhamento e mostrou recuperação plena do estado geral após alguns meses.


Conclusão


O impacto e a abrangência da polifarmácia são substanciais. É crucial simplificar e reduzir o número de medicamentos prescritos. Esquemas complexos resultam em erros de administração, comprometimento da qualidade de vida, “cascatas de prescrição” e efeitos adversos.

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