Alguns comentários sobre a “síndrome de burnout”
- 3 de dez de 2019
Na medicina ocupacional, há determinados modismos que se sucedem uns aos outros ao longo do tempo. Na década de 1980, a doença ocupacional que recebia destaque frequente nas manchetes dos jornais era a LER (lesões por esforços repetitivos), depois renomeada como LER-DORT (lesões por esforços repetitivos-distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho). Em seguida, veio a PAIR (perda auditiva induzida pelo ruído). Na década de 2000, a ênfase passou para a fibromialgia e, há alguns anos, a “síndrome de burnout” ganhou evidência.
Em programas de televisão e revistas de variedades, é fácil encontrar artigos e matérias abordando essa “síndrome”, cuja prevalência é estimada em inacreditáveis 32% da população, superando até mesmo a hipertensão arterial sistêmica (prevalência de 21,4 a 24,8%) e o diabetes melito tipo 2 (prevalência de 7,5% na população brasileira). Apesar dos números alarmantes, a “síndrome de burnout” não tem um sistema de critérios e parâmetros diagnósticos definidos que permita fazer um levantamento epidemiológico. Os “critérios” diagnósticos mais comuns são:
- Exaustão emocional: perda da energia para lidar com as demandas emocionais e cognitivas do trabalho
- Despersonalização ou cinismo: indiferença ou atitudes e comportamentos disfuncionais em relação aos pacientes
- Sensação diminuída de realização pessoal e efetividade.
De acordo com pesquisas relacionadas à síndrome, ela ocorreria exclusivamente em decorrência de problemas trabalhistas (muitas vezes, em meio a disputas judiciais) e atividades de atendimento ao público, como é o caso de médicos, assistentes sociais e enfermeiros. Os tipos de trabalho que provocariam o burnout apresentariam as seguintes características:
- Exigências do trabalho: carga horária, metas e prazos implacáveis, pacientes complexos
- Conflito de papéis e papéis ambíguos
- Falta de controle e autonomia no trabalho
- Carência de suporte ou boas relações com superiores e colegas
- Falta de reciprocidade dos pacientes
- Falta de habilidade e capacidade para realizar o trabalho
- Ausência de comprometimento institucional com grupos e pessoas.
Embora a “síndrome” esteja tradicionalmente relacionada a exaustão emocional, despersonalização e percepção diminuída de realização e efetividade, diferentes estudos relacionam-na a outros critérios, como fadiga, cansaço cognitivo, irritabilidade, negligência, abandono do trabalho, perda de energia, depleção, debilidade, perda do idealismo, moral baixa e incapacidade para lidar com problemas. É possível também encontrar, sem muita dificuldade, relatos de insônia, manifestações somáticas (vômitos), trabalho em turnos, entre outros.
Vale notar que não há critérios temporais definidores nem se sabe se a “síndrome de burnout” compreende um contínuo que vai desde “leve” até “severo” ou se é uma situação dicotômica, do tipo “tem” ou “não tem”. Desse modo, diferentemente de qualquer doença médica ou transtorno mental reconhecidos pela comunidade médica e científica, inexistem diagnósticos diferenciais para a “síndrome”.
Como notaram Bianchi et al. (2015), a “síndrome de burnout” foi definida por um questionário, e não o contrário. Transtornos mentais mais comuns, como depressão e ansiedade, são rastreados a partir de questionários específicos (como HAM-D, QIDS-SR e PHQ-9) desenvolvidos depois que as entidades clínicas estavam estabelecidas. No caso da “síndrome de burnout” ocorreu o contrário: criou-se um formulário (o Maslach Burnout Inventory – MBI) para, depois, definir um transtorno mental que se encaixasse nele. O MBI supõe que o “diagnóstico” da “síndrome de burnout” seja feito combinando-se, simultaneamente, a exaustão emocional, a despersonalização e a sensação diminuída de realização pessoal e efetividade. No entanto, o próprio manual do MBI sugere que cada um desses aspectos seja avaliado separadamente, criando uma situação inusitada: uma síndrome diagnosticada a partir da presença isolada dos sintomas cujo conjunto a define.
Christina Maslach, a criadora do burnout, já afirmou claramente que o conceito surgiu a partir de observações empíricas de psicólogos que avaliaram assistentes sociais e profissionais da saúde do ponto de vista psicológico e sociológico, sem empregar conhecimentos médicos e psiquiátricos. Essa informação revela muito sobre a “síndrome de burnout”, pois mostra que ela é a forma de descrever alguns fenômenos psicológicos, e não um transtorno mental ou uma doença particular.
De fato, a literatura psiquiátrica questiona a existência de uma “síndrome de burnout”: ela não está descrita no DSM-5 nem no CID-10, apesar de muitos médicos fazerem referência a ela com o código Z73.0 (“Esgotamento – Estado de exaustão vital”). Por outro lado, as características do burnout sobrepõem-se às do transtorno depressivo maior em termos de etiologia, sintomas, comportamento desenvolvido em resposta às emoções, preditores e resultados ocupacionais. Ambos os distúrbios estão associados a diminuição da performance, absenteísmo e rotatividade. Bianchi et al. (2018) descrevem correlação de 0,68 a 0,73 entre burnout e depressão, indicando que a sobreposição de ambos é, na verdade, a coincidência de fenômenos avaliados sob nomes diferentes. Portanto, convém lembrarmos os critérios diagnósticos para o transtorno depressivo maior dados pelo DSM-5:
A – Cinco ou mais dos seguintes sintomas, presentes durante o mesmo período nas últimas duas semanas; pelo menos um dos sintomas é humor deprimido ou perda do interesse e prazer:
1 – Humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias
2 – Perda do interesse e prazer em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia, quase todos os dias
3 – Perda ou ganho de peso ou do apetite
4 – Insônia ou hipersonia quase todos os dias
5 – Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias
6 – Fadiga ou perda de energia quase todos os dias
7 – Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inapropriada quase todos os dias
8 – Capacidade diminuída para pensar ou concentrar-se ou indecisão quase todos os dias
9 – Pensamentos recorrentes de morte e não somente medo de morrer, ideação suicida recorrente sem plano específico, tentativa de suicídio ou plano específico para cometer suicídio.
B – Os sintomas causam sofrimento significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida da pessoa
C – O episódio não é atribuível a efeitos fisiológicos ou a uso de substâncias
D – A ocorrência do episódio depressivo maior não é mais bem explicada por transtorno esquizoafetivo, esquizofrenia, transtorno esquizofreniforme, transtorno delirante etc.
E – Nunca houve um episódio maníaco ou hipomaníaco.
O cotejo entre as características definidoras da “síndrome de burnout” e os critérios diagnósticos da depressão maior realmente evidencia que a primeira é, na verdade, uma forma disfarçada da segunda. Os critérios 1, 2 e 6 respondem pela “exaustão emocional”; os sintomas 7 e 8 são a forma médica de descrever a sensação de inutilidade ou de perda de eficiência profissional; e o sintoma 2 responde pelo cinismo ou perda de interesse com os pacientes.
Diferentemente da descrição psicológica, a descrição psiquiátrica do fenômeno permite fazer o diagnóstico diferencial e estabelece parâmetros temporais claros, além de baseada em décadas de estudos fisiopatológicos e terapêuticos. É o caso do transtorno depressivo maior, que tem critérios claros e estabelecidos dentro de um sistema diagnóstico orgânico (DSM-5).
O fato de o burnout supostamente ser relacionado ao trabalho não o torna uma entidade clínica específica, mesmo porque a depressão pode ser causada por problemas laborais. Por sua vez, como nota Bianchi et al. (2018), um diagnóstico exclusivamente relacionado ao trabalho é um argumento bastante especioso. Até onde se sabe, inexistem doenças que ocorrem apenas no trabalho, ainda que haja aquelas nas quais o trabalho é um fator etiológico muito importante.
Desse modo, a “síndrome de burnout” não pode tornar-se uma chave mestra para explicar todo e qualquer queixa ou sintoma psíquico de trabalhadores. É preciso não confundir as categorias psicológicas e sociológicas com doenças definidas pela medicina. A tentativa de dar o status de doença a observações e fenômenos sociais ou psíquicos é um grave problema epistemológico. Como bem afirmou o filósofo Guilherme de Ockham, “as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”.
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