Através dos olhos do paciente – convivendo com um tumor no sistema nervoso central

Através dos olhos do paciente – convivendo com um tumor no sistema nervoso central

Por Dr. Gabriel Novaes de Rezende Batistella – A descoberta de um tumor no sistema nervoso central é certamente um evento traumático para qualquer pessoa e, nem sempre, nós, médicos, conseguimos captar todos os pensamentos que assombram nossos pacientes em um momento tão delicado. Muito deve ser discutido em uma consulta neuro-oncológica: de qual tumor se trata, quais as opções terapêuticas, quais os efeitos colaterais esperados em uma eventual quimioterapia e/ou radioterapia, qual a programação para retornos, quando devem ser realizados exames de controle, quais as opções de segunda ou terceira linha, caso necessário, sem contar a necessidade de proporcionar acolhimento familiar simultâneo. O acolhimento do paciente, principalmente na sua primeira vinda ao consultório ou ao ambulatório, é decisivo para seu futuro terapêutico, e um olhar no aspecto multidisciplinar é essencial.


Optei por convidar um paciente do setor de neuro-oncologia clínica da EPM/UNIFESP para relatar como é conviver com um oligodendroglioma difuso (grau II, OMS). Sua história é única, porém retrata a essência de muitos dos pacientes com diagnóstico oncológico e que poderão, um dia, buscar auxílio médico.



 


Adriana Cibele Sanches de Araujo


– A descoberta


Em junho de 2017, com 37 anos, comecei a perceber que, em alguns momentos, não sentia cheiro algum e, por consequência, sabor de absolutamente nada. Minha recordação não é tão significativa nesse período, mas lembro-me que isso me incomodava muito porque sempre tive receio de perder o olfato e o paladar.


Como eu tinha crises de sinusite constantemente e era inverno, uma época de muitas alterações climáticas, atrelei essa “perda” olfativa a um episódio de sinusite e não dei muita importância. Um mês após as primeiras manifestações, percebi que havia perdido o olfato e o paladar definitivamente.


Tenho em casa algumas medicações do tipo aerossol para aplicar nas narinas, usei-as com a intenção de obter melhora significativa, mas não houve progressão. Resolvi marcar uma consulta com um otorrinolaringologista porque achava que meu problema era algo relacionado à face.


Na primeira quinzena do mês de julho, passei em consulta, e o médico me explicou que a perda do olfato podia ocorrer por vários motivos, como nódulos faciais, desvios, pólipos, tumores faciais e, na pior das hipóteses, um tumor cerebral, o que era pouco provável, uma vez que eu não tinha sintomas que o caracterizavam, como fortes dores de cabeça, convulsões, epilepsias etc. Realmente, eu não sentia nenhum outro desconforto que me levasse a desconfiar de um tumor no cérebro.


Na semana seguinte, conforme o pedido do especialista, fui ao laboratório e fiz uma ressonância magnética da face. A partir daí, começaram minhas desconfianças. Um exame que, tem duração média de 30 a 45 min, demorou quase 2 h. O tempo todo entravam funcionárias do laboratório para me perguntar se eu me sentia bem, o que me fez desconfiar que alguma coisa estava errada.


Como minhas desconfianças quanto ao resultado do exame só aumentavam, pedi que meu laudo, marcado para ficar pronto em uma segunda-feira, fosse antecipado para sexta-feira. Aleguei já ter agendado o retorno médico, o que não era verdade. Na sexta-feira, dois dias após o exame, recebi uma ligação do laboratório, avisando que meu resultado estava pronto e já poderia ser retirado.


Fui busca-lo imediatamente e, quando o abri – detalhe, fiz patologia clínica, portanto, mesmo sem amplos conhecimentos médicos, seria capaz de entende-lo –, vi que se tratava de um laudo com muitas informações e detalhes. Confesso que fiquei um pouco perdida e fui direto para a conclusão.


Meus olhos não acreditavam no que estavam lendo. Era, sim, a pior das hipóteses descritas pelo otorrino: tratava-se de uma lesão expansiva infiltrativa no sistema nervoso central, caracterizando uma neoplasia com características oligodendrogliais.


Naquele momento, perdi o chão, não senti o corpo. Meus olhos encheram de lágrimas porque quando se lê “neoplasia”, entende-se que se trata de um tumor… Maligno? Benigno? Oligodendrogliais? O que seria isso? Fui imediatamente pesquisar no “Dr. Google” e não consegui muitas informações, a não ser termos técnicos, mas o que me chamou a atenção foram diversos sites usar como definição “câncer cerebral”.


– O medo


Naquele momento, senti medo do desconhecido. Não sabia sobre o que os sites estavam falando. Não havia clareza nas informações, e a melhor forma de conduzir a situação era agendar uma consulta com um especialista.


Naquela mesma tarde, já passei com um neurologista, que me atendeu com muita atenção. Após vários testes (visual, memória, coordenação motora, sentidos), disse que só abriria o resultado do exame para confirmar o que já desconfiava. Ele foi claro e preciso, explicou se tratar de um tumor cerebral, mas que, a partir dali, não poderia mais conduzir meu caso, deveria imediatamente consultar um neurocirurgião, pois se tratava de uma situação cirúrgica.


Imediatamente, agendei uma consulta com o neurocirurgião, porém ainda teria uma batalha pela frente… Minha família. Como tenho uma irmã que trabalha na área de saúde da Prefeitura de São Paulo, falei com ela por mensagens e passei o laudo da ressonância. Ela tem uma amiga médica e marcamos uma conversa em um café. Estávamos muito nervosas, mas essa amiga nos acalmou e esclareceu vários pontos: primeiro que se tratava de um tumor em um local operável. Esse era um dos meus principais temores, não poder retirá-lo.


– A família


Naquela fase da vida, estávamos passando por um momento feliz depois de ter experimentado algumas turbulências. Em junho de 2016, meu pai havia sido diagnosticado com câncer de próstata. Ele tinha 75 anos, era hipertenso, o que tornava a cirurgia arriscada. O oncologista decidiu fazer 38 sessões de radioterapia e injeções semestrais. Em julho de 2017, um ano após o tratamento, foi constatado nos resultados dos exames periódicos que seu antígeno prostático específico (PSA) estava diminuindo cada vez mais, o que evidenciava regressão da doença. Ele já estava ótimo, sem nenhuma intercorrência ou sequela. Até os efeitos da radioterapia tinham passado. Então lembrei que teria de expor o que estava acontecendo comigo, afinal, nesse momento a família é fundamental!


Na época, meu filho estava com 4 anos (hoje tem 5 anos). Ele é minha vida. Em uma situação como essa, de descoberta, muitas coisas passam por nossa cabeça, ainda mais quando não sabemos o que é a doença, como será o tratamento etc. São muitas dúvidas, tudo é novidade, infelizmente, novidade ruim.


Naquela mesma noite em que peguei o resultado e passei no neurologista, conversei com meus pais e expliquei o que havia dado no exame. Tentei ser o mais serena possível, até porque também não sabia muito. Era uma sexta-feira, e a consulta com o neurocirurgião ocorreria somente na quarta-feira seguinte. Eles se desesperaram, porém entenderam e sabiam que estávamos apenas começando. Eu mantive a calma, tentei explicar de uma forma que não parecesse ser o que realmente era. Senti-me na obrigação de poupá-los, já que eu mesma ainda estava tentando digerir o ocorrido.


No dia seguinte, foi a vez de contar para o meu marido. Ele já havia perguntado o resultado do exame por telefone, mensagem, e eu protelei a resposta até podermos conversar pessoalmente. Ele tinha certeza de que estava tudo bem e que eu não deveria me preocupar. Na conversa, fui mais direta, disse que o resultado do meu exame era a pior hipótese cogitada pelo otorrino. Ele compreendeu na hora. Abraçou-me e choramos muito, inclusive foi uma das poucas vezes que chorei por isso. Depois, aos poucos, fomos nos acalmando. Precisávamos ser fortes porque a pior consulta ainda aconteceria.


– A fé e a positividade


Assim que comecei a perder o olfato, o tempo todo senti que deveria procurar ajuda médica; meu “sexto sentido” dizia que eu deveria me preocupar, mas, mesmo depois do resultado, não me abalei. Da mesma forma que meu lado intuitivo dizia que se tratava de algo sério, também dizia que tudo acabaria bem. Eu só precisava de calma e paciência.


Tenho uma fé inabalável, minhas crenças, minha religião, e me apeguei muito a Deus para passar por esse momento tão conturbado. Nunca pensei na morte ou nas sequelas. Eu só queria me livrar daquele “intruso”. Queria viver. Viver para minha família, meu esposo, meu filho e por mim!


– A cirurgia


Na quarta-feira seguinte ao resultado do exame, passei na tão esperada consulta com o neurocirurgião. O médico nos deu muita atenção e explicou tudo detalhadamente, foi bastante esclarecedor. Deus foi muito generoso comigo, só colocou anjos de jalecos no meu caminho, e como isso me ajudou! Ajuda até hoje!


O neurocirurgião explicou exatamente o resultado do meu exame. Tratava-se de um tumor cerebral, provavelmente um oligodendroglioma grau II, e não havia outra possibilidade terapêutica a não ser o procedimento cirúrgico, ou seja, ressecar o tumor.


Passou a elucidar, então, como seria a craniotomia. A maior preocupação dele era a localização do tumor. Estava no frontal esquerdo, muito próximo ao sentido da fala. Nessa primeira consulta, ele me alertou sobre a possibilidade de precisar fazer a ressecção comigo acordada para que uma médica fisiatra pudesse acompanhar o procedimento. Não gostei da ideia, achei que ficaria agitada durante a cirurgia, mas confiei que ele saberia o melhor para mim.


Nessa primeira consulta, já me indicou uma medicação anticonvulsivante, para evitar o risco de convulsão.


Quando há alguma complexidade no caso, os resultados dos exames ficam com o médico responsável para ser discutido nas reuniões semanais entre especialistas. O meu foi mais de uma vez para a discussão. Em uma dessas reuniões, chegaram à conclusão de que todo o procedimento seria realizado comigo sedada.


Eu queria muito entender o motivo da perda de olfato. O médico explicou que, com o crescimento do tumor, os canais olfatórios do cérebro foram invadidos, o que causou perda olfativa e, por consequência, do paladar. Quando há uma lesão no cérebro, dependendo da complexidade, o sintoma pode ou não ser reversível. No meu caso, a volta do olfato era remota.


Uma semana após essa consulta, comecei a sentir um cheiro muito forte de “borracha queimada”. Em contato com meu médico, ele me esclareceu que esse cheiro era decorrente do tumor e que poderia anteceder uma crise convulsiva.


Após várias consultas durante o mês de agosto e diversos exames pré-operatórios (ressonância de encéfalo com neuronavegação, radiografia do tórax, MAPA, Holter, exames de sangue), a cirurgia foi agendada.


Minha internação aconteceu muito cedo. O início do procedimento foi às 7h25 e durou 5 horas. Após a cirurgia, fiquei na UTI neurológica. A previsão era passar 24 h na UTI; porém, um dia após a cirurgia, fiz uma nova ressonância, que constatou que sofri uma isquemia no leito cirúrgico. Permaneci na UTI por mais um dia. Depois de 3 dias da cirurgia, tive alta.


– O pós-cirúrgico


O pós-cirúrgico foi um pouco complicado. Minha memória ficou comprometida por cerca de 2 semanas. Enquanto estive internada, fazia fisioterapia duas vezes por dia e, ao caminhar, o lado direito “falhava”. Quando recebi alta, também precisei andar diariamente em casa e, durante uma semana, “manquei”. A recuperação foi ocorrendo aos poucos.


Quanto à memória, foi um pouco mais complicado. Esquecia palavras simples, como sofá, rack, livro. Ia falar uma frase com esses termos e simplesmente me apagava. Isso me deixava nervosa porque não conseguia pensar. Perdia-me no tempo e, diversas vezes acordei de madrugada sem saber se estava deitada em uma cama ou um berço. Apresentava confusão mental.


Fiquei agressiva, não queria tomar medicações, medir temperatura, comer. Fiquei uma semana na casa dos meus pais, pois minha cabeça estava muito inchada e não podia ficar sozinha.


Quinze dias após a cirurgia, retirei os pontos; de todo o processo, isso foi o mais doloroso para mim. A pele do rosto (próxima à região da orelha) cresceu e cobriu os pontos, e a enfermeira teve de passar a navalha na pele para retirá-los (37 no total). Em algumas regiões da cabeça, perdi a sensibilidade, então só senti os movimentos de retirada, em outros, foi muito dolorido.


As sequelas e o tratamento


Conforme meu neurocirurgião já havia alertado, mesmo após a cirurgia, meu sentido olfativo e o paladar não voltaram, já que houve lesão cerebral. Em novembro, senti uma dor terrível de cabeça, justamente no local da cirurgia. A dor era tão forte que meus dentes e maxilar doíam. Chegava todos os dias ao trabalho chorando, até que, no terceiro dia, mandei uma mensagem para meu médico. Ele me passou um medicamento e, com o passar dos dias, a dor foi diminuindo. Isso fez com que eu não procurasse um hospital.


Como já tinha um pedido médico para uma ressonância de controle, o médico me pediu para antecipar o exame, assim poderíamos verificar o que estava provocando tanta dor. Fiz a ressonância na semana seguinte e, para surpresa, inclusive do médico, o resultado foi uma extensa trombose cerebral.


Ele achou estranho, porque essa enfermidade ocorre com mais frequência em pacientes com tumor de alto grau de malignidade, o que não era meu caso, já que fui diagnosticada com grau II. Para confirmação, fiz uma angiorressonância. Uma semana depois, veio a confirmação de trombose. O neurocirurgião entrou com a medicação Clopidogrel. Paralelamente, estava tomando Hidantal a cada 8 h e Keppra a cada 12 h. Após 1 mês, fiz nova consulta e a medicação foi alterada. Esses medicamentos foram interrompidos e substituídos por Xarelto.


Mantive o acompanhamento por meio de ressonâncias e o resultado de uma delas chamou a atenção do neurocirurgião. Ele mencionou a possibilidade de entrarmos com radio e quimioterapia, mas isso seria discutido na próxima reunião semanal com os especialistas.


Pela primeira vez, depois de 7 meses desde a descoberta da doença, saí do consultório chorando. Não acreditava que precisaria de tratamento complementar depois de tanto tempo.


Mesmo lendo muito sobre a doença e sabendo da possibilidade de isso acontecer a qualquer momento, é difícil aceitar. Eu nunca tinha sido submetida a um tratamento tão complexo e me assustava as possíveis sequelas da radio e da quimioterapia. Ainda assim, eu estava disposta a fazer o necessário para não ter consequências maiores.


Já havia passado por uma craniotomia, por uma trombose cerebral, mas conservava a certeza de que, se realmente precisasse começar esse tratamento, eu venceria a “batalha”.


Assim que acabou a reunião médica, meu médico me ligou para explicar o que havia sido definido pelos especialistas. Disse que, a princípio, não começaríamos a radio nem a quimioterapia porque esse tratamento tem consequências, o que poderia ser mais maléfico do que benéfico, além de não haver a real necessidade.


Para mim foi um verdadeiro alívio, mas, repito, estaria disposta a fazer o tratamento se houvesse necessidade. Nesse mesmo dia, meu neurocirurgião comentou que um médico que participava dessas reuniões mensais havia se interessado pelo meu caso e me pediu para entrar em contato com ele e agendar uma consulta. Liguei no mesmo dia.


Uma semana depois, passei com ele e outro especialista. Mais uma vez, Deus foi muito generoso comigo, colocou esses anjos vestidos de jalecos. Médicos muito competentes e com um lado humano ímpar!


Todas as minhas dúvidas, porque ainda restavam algumas, foram esclarecidas. Inclusive, relatei a eles dois episódios recentes de “apagão” de memória. Em um caso, tinha ido ao supermercado e, chegando lá, esqueci absolutamente tudo o que fui comprar. Em outro, me dirigi a uma loja de chocolates para comprar lembrancinhas de Páscoa para as professoras do meu filho e, chegando lá, não sabia o motivo de estar ali.


Um deles disse que eu precisaria começar a tomar novamente o Keppra, um antiepiléptico, porque poderia estar relacionado à epilepsia. Achei estranho porque, no meu entendimento, ela se dá quando a pessoa sofre um ataque, mas ele me explicou que a epilepsia ocorre de várias formas.


Foi solicitado um exame de eletroencefalograma para confirmar o diagnóstico e realmente o resultado foi “descargas epileptiformes de projeção temporal anterior à esquerda”, ou seja, epilepsia no local da manipulação cirúrgica. No retorno da consulta com os neuro-oncologistas, o Keppra foi mantido e solicitaram retorno após a ressonância de controle, em agosto.


Hoje, 11 meses após a craniotomia, posso dizer com precisão que muitas coisas mudaram na minha vida: minha sequela principal, e a que mais me incomoda, é ter perdido o olfato e o paladar. Sou jovem, cheia de vida, adorava comer. Quando fiz a cirurgia, pesava 74 quilos, agora peso 62 quilos, ou seja, emagreci 12 quilos. O fato de não ter paladar me fez perder também o prazer pela comida. Ainda tenho esperanças de que um dia esse quadro mude e eu volte a sentir, pelo menos, um percentual pequeno do gosto das coisas.


Quanto a ter emagrecido 12 quilos, não foi tão ruim assim, mas poderia ter sido por outro motivo.Com a volta do antiepiléptico, não posso ingerir bebida alcoólica e, como uma boa apreciadora de vinhos, precisei abrir mão disso. Faço exames de controle trimestrais e, a cada novo exame, novas expectativas, já que meu tumor tem 50% de chance de recidiva.


Hoje procuro viver de uma forma diferente, sem pensar muito no futuro. Vivo um dia após o outro e intensamente, como se fosse o último.


As vezes precisamos tomar alguns “sustinhos” para entender que não devemos dar importância a coisas pequenas, porque a doença acomete qualquer um, sem distinção de raça, cor, religião e condição social.


Ouvi de um de meus médicos algo que me marcou e que levarei para sempre comigo, cheguei inclusive a postar nas minhas redes sociais: “Nunca viva a doença”. É exatamente isso! Essa frase condiz exatamente com meu momento de vida atual e acredito que muitas pessoas que passam pelo que passei deveriam ouvi-la e entender sua mensagem.


Se receber a notícia de que tem um tumor cerebral, não pense que é o fim. Muito pelo contrário, corra atrás do tratamento por mais complexo que seja, pois todo tratamento um dia acaba, mas só existe uma vida e temos que mover céus e terras para mantê-la.


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