Cefaleias que inspiram cuidados
- 30 de abr de 2020
As cefaleias secundárias ocorrem quando há alguma comorbidade que possa cursar com dor de cabeça. Embora algumas situações possam parecer óbvias, outras demandam alto grau de suspeição. O não reconhecimento das cefaleias de interesse neurocirúrgico pode provocar sério risco à saúde dos pacientes. As condições clínicas que necessitam propedêutica específica são apresentadas por meio de casos clínicos ilustrativos e que foram conduzidos pelo autor.
Caso 1: Paciente feminina, 62 anos, com quadro crônico de enxaqueca, em tratamento com neurologista. A paciente relata piora da dor, tanto em frequência quanto em intensidade. Relato novo de perceber escotomas cintilantes no olho direito. Solicitou-se angiorressonância magnética de artérias encefálicas, que evidenciou aneurisma da artéria oftálmica direita, localizado logo abaixo da porção cisternal inicial do nervo óptico direito (Figura 1). Esse achado explica a presença dos escotomas cintilantes, secundários à pulsação do domo do aneurisma sob o nervo óptico. A expansão de um aneurisma pode causar dor, por distender a adventícia do vaso. A paciente foi submetida a operação, sem qualquer intercorrência, e teve alta no terceiro dia, com cessação dos escotomas e melhora da cefaleia. Portanto, pacientes com cefaleias primárias que modificam seu padrão de modo inesperado, seja por intensidade, seja qualidade da dor, devem ser melhor investigados.1
A B C
Figura 1 A e B: aneurisma de artéria carótida interna direita em seu segmento oftálmico. A lesão encontrava-se inferior ao nervo óptico direito e dentro do canal do nervo óptico. C: paciente com 36 h de pós-operatório.
Caso 2: Paciente masculino, 34 anos, com cefaleia e, segundo a esposa, alteração de comportamento: antes calmo e tranquilo, adotou postura agressiva e beligerante. O exame neurológico mostrou paciente agitado e impaciente. A ressonância magnética de encéfalo mostrou enorme meningioma frontal com grave efeito compressivo sobre estruturas circunjacentes (Figura 2A). A síndrome de hipertensão intracraniana explica a cefaleia, e a compressão do giro do cíngulo bilateral explica a alteração comportamental. Pacientes com cefaleia nova associada a alteração de comportamento (ora mais evidente, ora não) devem ser melhor estudados. O paciente foi operado e até o último contato houve sensível melhora do humor e cessação da cefaleia. Não houve qualquer sequela da cirurgia (Figura 2B).
A
B
Figura 2 A: ressonância magnética de paciente com meningioma frontal gigante com manifestação clínica de alteração de comportamento e cefaleia. Note, em secção coronal, a ocorrência de hérnia subfalcina com compressão do giro do cíngulo bilateral (setas brancas). B: aspecto pós-operatório após um mês de cirurgia. Observa-se ressecção total da lesão. Os giros do cíngulo apresentam morfologia normal (quadrado tracejado branco).
Caso 3: Paciente masculino, 65 anos, com cefaleia de intensidade progressiva. Queixa de dor contínua no lado esquerdo da cabeça. Familiares relatam “falta de atenção”, “esquecimento” e períodos de confusão mental havia aproximadamente 2 meses. Houve alguma confusão mental ao exame, bem como discreta paresia à direita à manobra de Mingazzini (estender os braços em posição horizontal com as palmas das mãos voltadas para cima, em supinação, e olhos fechados; a manobra é considerada positiva caso haja pronação com alguma queda do membro superior em relação ao membro contralateral). O paciente já fora consultado em duas ocasiões, com diagnóstico de quadro demencial incipiente. A tomografia computadorizada de encéfalo mostrou coleção hemática subdural crônica esquerda (Figura 3).
Após insistente pergunta sobre a possiblidade de trauma cranioencefálico, familiares relataram “escorregão” enquanto deambulava em casa aproximadamente 60 dias antes. Foi submetido a operação e recebeu alta hospitalar no terceiro dia pós-operatório, assintomático e com cognição basal (aquela de antes da queda). Hematomas subdurais crônicos (HSDC) são relativamente comuns em pessoas longevas e podem ser ocasionados por traumas cranianos leves, até mesmo de difícil recordação. A queixa de cefaleia, o comprometimento cognitivo e a discreta hemiparesia contralateral advieram de hipertensão intracraniana causada pelo HSDC. Esse diagnóstico deve ser sempre lembrado em pacientes longevos, principalmente em usuários de antiagregantes plaquetários e/ou anticoagulantes.
Caso 4: Paciente feminina, 62 anos, apresentou cefaleia holocraniana de intensidade extrema, como nunca antes vivenciada. Não apresentava qualquer comorbidade. Percebeu-se alteração do estado geral e foi levada imediatamente ao hospital. A tomografia de encéfalo mostrou hemorragia subaracnoide espontânea grave (Figura 4A). Submeteu-se ainda a uma arteriografia encefálica que revelou aneurisma bilobulado na bifurcação da artéria carótida interna esquerda (Figura 4 B). Foi operada e não ocorreram intercorrências. Foi mantida em regime de internação hospitalar por 21 dias. Poucas condições podem causar cefaleia de intensidade tão grande. Trata-se de cefaleia súbita – “a pior cefaleia da vida” – , quase sempre acompanhada por alguma alteração do nível de consciência, o que torna a hemorragia subaracnoide diferente de outras condições. É possível fazer o diagnóstico diferencial com a cefaleia em salvas; entretanto, há lacrimejamento, hiperemia conjuntival, rinorreia e congestão nasal, além de a cefaleia ser estritamente unilateral.1
Figura 4 A: tomografia computadorizada de encéfalo que evidencia hemorragia subaracnoide grave (Fisher III). B: arteriografia cerebral mostra aneurisma bilobulado na bifurcação da artéria carótida interna esquerda (setas brancas).
Caso 5: Paciente masculino, 70 anos, com cefaleia temporal direita. Descreve cefaleia de intensidade variável, podendo alcançar forte intensidade, restrita à têmpora direita, “latejante”. O quadro teve início há 6 meses. O paciente procurou avaliação médica em duas ocasiões, lhe tendo sido prescritos analgésicos comuns e anti-inflamatórios não esteroides (AINE). Nada se detectou ao exame neurológico. A palpação da região temporal direita era dolorosa. Diante do quadro, suspeitou-se de arterite de células gigantes (ou arterite temporal, Doença de Horton).2 Assim, solicitou-se exame de velocidade de hemossedimentação, cujo valor foi de 80. Para confirmação diagnóstica, o paciente foi submetido a uma pequena incisão cutânea para obtenção de material de biópsia de ramo da artéria temporal superficial. O laudo anatomopatológico confirmou o diagnóstico de arterite de células gigantes. Embora possa estar acompanhada de outros sintomas, a arterite de células gigantes manifesta-se preferencialmente por acometimento das artérias temporal superficial, oftálmica, central da retina e ciliar. Iniciou-se tratamento com corticoides.
Os casos citados ilustram cefaleias secundárias; três deles tiveram diagnóstico equivocado por outros profissionais. A investigação pormenorizada é mandatória nos seguintes casos: cefaleia em pacientes oncológicos; pacientes em uso de antiagregantes plaquetários ou anticoagulantes; portadores de hipertensão arterial grave; crises convulsivas ou déficits neurológicos; alterações comportamentais; casos de trauma cranioencefálico recente; portadores de discrasias sanguíneas; mudança no padrão prévio de cefaleias primárias; suspeita de hidrocefalia, ou alguma outra causa de hipertensão intracraniana; e cefaleia de novo em adultos, particularmente no sexo masculino.
Referências bibliográficas
- Headache Classification Committee of the International Headache Society (IHS) The International Classification of Headache Disorders, 3rd edition. Cephalalgia. 2018;38(1):1-211.
- Pitella JE, Rosemberg S, Hahn MD, Chimelli L, Grinberg LT, Andrade MPG, et al. Sistema nervoso. In: Brasileiro Filho G. Bogliolo: Patologia. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 929.