Cirurgia do lado errado ou da pessoa errada

Cirurgia do lado errado ou da pessoa errada

Por Dr. Genival Veloso de França – O erro médico, quase sempre por culpa, é uma forma de conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir dano à vida ou à saúde do paciente. É o dano sofrido pelo paciente que possa ser caracterizado como imperícia, negligência ou imprudência do médico no exercício de suas atividades profissionais. Levam-se em conta as condições do atendimento, a necessidade da ação e os meios empregados.


É diferente do acidente imprevisível, no qual há um resultado lesivo, supostamente oriundo de caso fortuito ou força maior, à integridade física ou psíquica do paciente durante o ato médico ou em face dele, porém incapaz de ser previsto e evitado, não só pelo autor, mas por outro qualquer em seu lugar.


Já o resultado incontrolável seria aquele decorrente de uma situação grave e de curso inexorável. Ou seja, aquele resultado danoso proveniente de sua própria evolução, para o qual as condições atuais da ciência e a capacidade profissional ainda não oferecem solução.


O erro médico, no campo da responsabilidade, pode ser de ordem pessoal ou de ordem estrutural. É estritamente pessoal quando o ato lesivo se deu, na ação ou na omissão, por despreparo técnico e intelectual, por grosseiro descaso ou por motivos ocasionais referentes às suas condições físicas ou emocionais. Pode também o erro médico ser procedente de falhas estruturais, quando os meios e as condições de trabalho são insuficientes ou ineficazes para uma resposta satisfatória.


Ninguém desconhece, por exemplo, o despreparo técnico e intelectual do médico que está se formando. Nem mesmo sabemos ainda o tipo de profissional de que necessitamos para a nossa realidade. Seu aparelho formador, salvo algumas exceções, está transformado em fábricas de diplomas, carentes de recursos materiais, desfalcado de uma estrutura curricular mais séria e contando com professores, na sua maioria, despreparados e sem motivação.


Se o aumento de vagas representasse efetivamente uma oportunidade de distribuir melhor os médicos em nosso território e, com isso, elevar o padrão assistencial entre nós, tudo bem. No entanto, na prática, isso não se verifica, porque elas foram criadas por pressão de políticos locais e por interesses inconfessáveis de quem as autorizou.


Ninguém também desconhece que muitos desses maus resultados são originados das péssimas e precárias condições de trabalho, numa atenção à saúde cada vez mais decadente e mais anárquica como proposta, mesmo que tenhamos um número regular de médicos em relação a nossa população. Além de registrarem-se os mais baixos índices de saúde, o profissional sente, em seu dia a dia, dificuldades em exercer suas atividades, face aos precários meios de trabalho.


Nesse cenário perverso, que pode parecer desproposital ou alarmista, é fácil entender o que vem acontecendo nos locais de trabalho médico, onde se multiplicam os danos e as vítimas, e onde o mais fácil é culpar os médicos, que ética e legalmente seriam os primeiros responsáveis. Eles não são melhores nem piores que os outros profissionais, mas são os que aparecem no momento da morte e do desespero, pela natureza do seu próprio ofício.


Dentro desse universo de maus resultados está a chamada cirurgia do lado errado ou da pessoa errada. Essas cirurgias erradas, quanto ao lado ou quanto à pessoa, embora raras, não se pode dizer que não ocorram, pois hoje, com a sistematização do ato operatório e a inserção das equipes até multidisciplinares, há uma tendência a reduzi-las a um número bem insignificante. Mesmo assim, se não houver uma política séria de prevenção nesse sentido, tais situações ainda vão trazer terríveis constrangimentos.


Dessa forma, o fato de alguém ser operado do joelho esquerdo em vez do direito ou de se submeter a uma histerectomia quando deveria ter seu apêndice extirpado são situações para as quais dificilmente há uma justificativa de ausência de culpa por tal resultado tão devastador, sendo que a cirurgia do lado errado é muito mais grave quanto ao seu resultado lesivo. É nas áreas de maior complexidade e de maior utilização tecnológica, como nas salas de cirurgia, nas unidades de terapia intensiva e nas emergências onde mais se verificam esses resultados tão inesperados.


Mesmo que o cirurgião seja o responsável pelo ato operatório e caiba a ele todos os cuidados de avaliação pré, trans e pós-operatório não se pode dizer que todo resultado dessa natureza tenha por responsável sua negligência. Assim definiu, nos Estados Unidos, a Joint Commission on Accreditation of Health Care Organizations, ao analisar 126 casos com tais resultados adversos, inclusive apresentando o “protocolo universal para prevenir a cirurgia do local errado, do procedimento errado e da pessoa errada”.


Esse protocolo baseia-se praticamente nos seguintes cuidados: 1 – Identificar os pacientes corretamente no agendamento da cirurgia; 2 – Melhorar a efetividade da comunicação entre profissionais e pacientes; 3 – Introduzir um programa de avaliação de riscos; 4 – Instituir visitas pré-operatórias em equipe; 5 – Listagem exposta de pacientes e procedimento no bloco cirúrgico; 6 – Exames de imagens e outros itens necessários e visíveis na sala de cirurgia que identifiquem o paciente; 7 – Marcar o local da cirurgia com tinta indelével; 8 – Identificar no pré-operatório imediato o paciente correto, o procedimento correto e o local correto pelos membros da equipe; 9 – Quando possível ter a confirmação dos pacientes antes de começar a operação.


Embora haja em todo ato operatório uma responsabilidade que é de todos, a tendência atual é dividir o ônus dos cuidados por determinados agentes, aos quais cabe a tarefa de supervisionar e a responsabilidade por cada procedimento, de se atribuir a cada indivíduo um tipo de compromisso e um grau de responsabilidade. Não estamos mais no tempo de a responsabilidade exclusiva ser do superior hierárquico.


A compreensão que se tem no momento é que a cirurgia de lado errado ou de pessoa errada não pode mais ser considerada uma fatalidade. Mesmo que a atividade do setor de saúde curativa seja considerada de alto risco, em resultados dessa natureza, há sempre uma culpa a ser declarada.


 


 


 


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