Qual a melhor técnica e local da lesão para coleta de amostras para o exame direto no diagnóstico da leishmaniose cutânea?

Qual a melhor técnica e local da lesão para coleta de amostras para o exame direto no diagnóstico da leishmaniose cutânea?

No Brasil, a leishmaniose cutânea (LC) é associada a sete espécies de Leishmania, sendo Leishmania (Viannia) braziliensis a espécie mais prevalente. A úlcera típica da LC costuma ser arredondada, indolor e medir até poucos centímetros.1

 

O diagnóstico de LC, sempre que possível, deve ser baseado no aspecto da lesão, em evidências epidemiológicas e em exames laboratoriais, considerando o diagnóstico diferencial com outras doenças.1-6

 

O exame histopatológico permite o dignóstico diferencial com outras doenças cutâneas. No entanto, apresenta baixa sensibilidade para visualização de formas amastigotas, além de necessitar da realização de biópsia da lesão e de colorações especiais para a visualização de micobactérias e fungos.4,7 Portanto, quando a conclusão diagnóstica se limitar ao aspecto histopatológico de infiltrado inflamatório crônico inespecífico ou granulomatoso, sem evidenciação de parasitas, o diagnóstico diferencial entre leishmaniose e outras doenças, como micoses, tuberculose, micobacterioses e outras infecções bacterianas, fica comprometido.

 

Atualmente, existem diferentes técnicas, de maior ou menor complexidade, para o diagnóstico laboratorial da LC, como a pesquisa direta de formas amastigotas de Leishmania ao microscópio óptico, conhecida por exame direto;2,8 o isolamento de formas promastigotas de Leishmania em meio de cultura;9 exames imuno-histoquímicos para detecção de antígenos de Leishmania6,10 e testes moleculares para detecção do DNA parasitário, baseados na reação em cadeia da polimerase (PCR).5 O método de mais alta sensibilidade para o diagnóstico de leishmaniose é a PCR quantitativa (qPCR), que permite estimar a carga parasitária mesmo em amostras com baixa quantidade de material genético.11-13 Entretanto, a aplicação dessas ferramentas depende da infraestrutura e dos recursos disponíveis. Em algumas regiões brasileiras, o diagnóstico de LC permanece baseado, exclusivamente, em critérios clínicos e epidemiológicos. Nesse contexto, por ser um método de execução simples e de baixo custo operacional, o exame direto tem sido utilizado como a principal ferramenta para o diagnóstico laboratorial da LC.

 

Os procedimentos tradicionais para a obtenção de amostras para o exame direto são a impressão em lâmina (imprint) e a distensão em lâmina de material obtido por raspado. Para a preparação do imprint, é realizada uma biópsia da borda da lesão, e, após limpeza com gaze seca, o fragmento de tecido é levemente pressionado sobre lâmina de microscopia. Este método tem como desvantagem incluir etapas de anestesia, excisão cirúrgica do fragmento tecidual e sutura, procedimentos privativos do profissional médico. Contrariamente, o raspado (escarificação) da borda da lesão é um procedimento pouco invasivo que pode ser realizado por técnicos equipados com lâmina de bisturi ou lanceta. Por ser bem tolerado pelos pacientes, e não necessitar de anestesia nem de sutura, o processo pode ser repetido em diferentes lesões ou na mesma lesão, em momentos diferentes.1,14,15 Independente do processo de obtenção das amostras, as preparações em lâminas de vidro são fixadas e coradas com misturas derivadas do Romanowsky, como Giemsa, Leishman, Wright, May-Grunwald ou Jenner. O método costuma apresentar baixa sensibilidade, especialmente, em infecções por L. (V.) braziliensis, que cursam com baixa carga parasitária nas lesões.1 Os fatores que influenciam na sensibilidade desse método são a carga parasitária, o tempo de evolução da lesão, o tipo e a qualidade do material coletado, e a experiência do examinador.14 A distribuição dos parasitos na lesão não é uniforme, e há divergências com relação ao tipo de material (imprint ou raspado) e local de escolha para coleta de amostras. Embora alguns autores utilizem escova citológica para coleta de material no centro da úlcera,11,12,16 a recomendação padrão é que a biópsia ou o raspado sejam realizados na borda da lesão,1,14,15 o que será o foco deste artigo.

 

Entretanto, ainda existem dúvidas sobre qual região da lesão ulcerada (borda interna [BI] ou borda externa [BE]) apresenta maior quantidade de parasitos. Neste artigo tentaremos responder a duas questões:

 

  1. Qual o melhor material a ser coletado para o exame direto, imprint ou raspado?
  2. No caso do raspado, qual o melhor local para ser realizado, a BI ou a BE da lesão ulcerada?

 

Para isso, nos basearemos em duas dissertações de mestrado14,17 que estudaram as mesmas amostras biológicas com técnicas diferentes.

 

A dissertação de Mello (2011) comparou os resultados do exame direto em preparações obtidas por raspado da BI e da BE da lesão ou por imprint de fragmento obtido por biópsia, do mesmo local onde foram realizados os raspados.

 

Para verificar a carga parasitária por qPCR, Thomaz (2020) extraiu o DNA presente nas preparações utilizadas por Mello (2011), que estavam preservadas em arquivo de lâminas. Adicionalmente, comparou por microscopia óptica, a frequência de formas amastigotas na BI e na BE de cortes histológicos cujos respectivos fragmentos teciduais foram utilizados para os imprints. Tais cortes histológicos foram obtidos dos respectivos blocos parafinados que também se encontravam preservados em arquivo.

 

 

Estudo de Mello (2011)

 

Entre 2009 e 2010, foram investigados 110 pacientes com suspeita de LC. O diagnóstico de LC foi confirmado em 40 pacientes (36,4%), incluídos no estudo, por isolamento de formas promastigotas de Leishmania em meio de cultura bifásico Novy-Neal-Nicolle (NNN) e meio Schneider’s Drosophila enriquecido com 10% de soro fetal bovino. Destes isolados, 39 foram identificados como L. (V.) braziliensis e um como L. (L.) amazonensis por eletroforese de isoenzimas.8,9

 

O raspado na BI e na BE foi realizado com auxílio de lâmina de bisturi número 11, executado de forma suave e o material transferido para uma lâmina de vidro com 12 áreas delimitadas (caselas), cuja preparação seguiu uma sequência padronizada (Figura 1A). Cada casela media 6 mm de diâmetro e correspondia a 250 campos microscópicos, totalizando 3.000 campos por lâmina (× 1.000) (Figura 2). No final de cada raspado na BI ou na BE, era solicitado que o paciente indicasse o nível de dor em uma escala visual analógica de 0 a 10, na qual o intervalo de 0 a 2 foi considerado como intensidade "leve"; 3-5 como "moderada"; 6-8 “intensa”, e 9-10 “insuportável”.8,18

 

 

Figura 1. Coleta de amostras biológicas de pacientes com leishmaniose cutânea. A: raspado de borda interna da lesão com auxílio de lâmina de bisturi. A': esfregaço. B: biópsia da borda da lesão com punch 5 mm. B': imprint. Fonte: Thomaz (2020).

 

 

Figura 2. Representação esquemática da lâmina de microscopia, com 12 áreas demarcadas (caselas) utilizadas para confecção dos exames diretos (imprint e raspado). Cada casela tem 6 mm de diâmetro e corresponde a 250 campos microscópicos (× 1.000). Fonte: Mello (2011).

 

A biópsia foi realizada na borda da lesão cutânea, após anestesia com lidocaína a 2%, com o auxílio de um punch de 5 mm de diâmetro, no mesmo local onde foram realizados os raspados das BI e BE, englobando 2/3 de borda externa e 1/3 de borda interna da lesão (Figura 3). Cada amostra foi dividida em dois fragmentos, um para o imprint e outro para inoculação em meio de cultura NNN/ Schneider enriquecido. O imprint foi realizado com compressões suaves do fragmento de tecido (Figura 1B) em cada uma das 12 casela da lâmina de vidro, na mesma sequência mostrada na (Figura 2).

 

Todas as lâminas foram fixadas com álcool metílico e, quando completamente secas, foram coradas pelo Giemsa. A leitura das lâminas foi realizada utilizando uma objetiva de imersão em óleo (× 1.000) seguindo a sequência indicada na (Figura 2) e registrando a área delimitada onde o primeiro parasita foi encontrado. Todas as lâminas foram preparadas e examinadas pelo mesmo técnico para evitar variações na coleta e leitura.

 

 

Figura 3. Representação esquemática do local da lesão onde foram realizados os raspados da borda interna (BI) e borda externa (BE) e a biópsia para imprint e cultura para Leishmania. Fonte: Mello (2011).

 

O imprint foi positivo em 28 pacientes, o raspado da BI em 25 e da BE em 17 pacientes, resultando em sensibilidade de 70%, 62,5% e 42,5%, respectivamente. Quando os três exames diretos foram combinados, o valor da sensibilidade atingiu 77,5%.

 

A positividade dos exames diretos em relação ao número de caselas examinadas revelou que a leitura de seis caselas (aproximadamente 1.500 campos microscópicos) foi suficiente para detectar 93% e 92% dos casos positivos pelo imprint e pelo raspado da BI, respectivamente (Tabela 1).

 

Tabela 1. Relação entre o número de caselas/campos microscópicos examinados e a positividade dos exames diretos por imprint e raspado da borda externa (BE) e da borda interna (BI) da lesão.

Fonte: Mello (2011).

 

A intensidade da dor causada pelo raspado da BI foi ausente ou leve em 65% dos 40 pacientes; moderada em 25%; intensa em 2,5%, e insuportável em 7,5%. Na BE, a dor foi ausente ou leve em 75% e moderada em 25%.

 

 

Estudo de Thomaz (2020)

 

Este estudo teve como objetivo comparar a carga parasitária e o perfil histopatológico na BI e na BE das lesões, nas mesmas amostras estudadas por Mello (2011).

 

Inicialmente, foram revisadas as lâminas originais, mantidas em arquivo, confeccionadas com material proveniente de raspados da BI e da BE, imprint e histopatologia, totalizando 156 lâminas provenientes, respectivamente, dos 39 pacientes estudados por Mello (2011) com LC causada por L. (V.) braziliensis. A presença de formas amastigotas em cada uma das caselas e o somatório do número de caselas positivas foram registrados durante a leitura microscópica e os resultados foram comparados entre as lâminas de raspado de BI, BE e imprint.

 

Para avaliar a diferença quantitativa entre BI e BE, foi utilizada a PCR quantitativa (qPCR). O DNA foi extraído das lâminas originais, fixadas com metanol, coradas pelo Giemsa e mantidas em arquivo. As lâminas foram limpas suavemente com lenço de papel e toda a sua extensão foi raspada com auxílio de lâmina de bisturi em placas de Petri estéreis. O material obtido foi acondicionado em um tubo de polipropileno estéril de 1,5 mL com a devida identificação. A extração foi realizada utilizando o Kit ChargeSwitch™ Forensic DNA Purification Kit (Thermo Fisher Scientific). A quantificação das amostras foi realizada pela qPCR utilizando o sistema SYBR Green com primers direcionados ao minicírculo do kDNA de Leishmania (Viannia) braziliensis e gene β-actina. Os resultados foram expressos como equivalentes de parasito por µg de tecido utilizando a seguinte fórmula: (Quantificação kDNA/([DNA] extraído de tecido*2,5)*103), onde 2,5 µL corresponde ao volume de DNA adicionado à reação, e multiplicação por 103 com objetivo de ajustar para µg/µL.

 

Adicionalmente, foram estudadas as lâminas histopatológicas, coradas pela hematoxilina-eosina, de 19 pacientes em cujas revisões das lâminas foi possível distinguir a BI e a BE da úlcera. As formas amastigotas foram visualizadas em aumento de 1.000x e, no campo microscópico de maior positividade, foi anotado o número de formas amastigotas totais e por vacúolos parasitóforos, tanto na BI quanto na BE da lesão. O índice parasitário utilizado foi adaptado segundo estudo anterior:7 0 ausente, + até 5 amastigotas por corte padrão, ++ de 6 amastigotas por corte padrão a 5 por campo de imersão (×1.000), +++ de 6 a 50 amastigotas por campo de imersão, ++++ mais de 50 amastigotas por campo de imersão.

 

No exame direto, foram obtidos 23 resultados positivos no raspado de BI, apresentando um total de 189 caselas positivas; na BE foram obtidos 17 resultados positivos, com 105 caselas positivas; enquanto as amostras de imprint apresentaram 27 amostras positivas, com 149 caselas positivas.

 

Foi possível realizar a quantificação absoluta da carga parasitária de todos os 39 pacientes no raspado de BI, BE e no imprint. Todas as amostras foram positivas na qPCR para β-actina. Foi observada maior carga parasitária na BI em relação à BE e imprint. Não houve diferença significativa na carga parasitária de imprint em relação à BE.

 

Pela análise histopatológica foi possível visualizar formas amastigotas na BI em 15 lâminas e na BE em 10, conferindo uma sensibilidade de 78% e 52% para o exame histopatológico, respectivamente. Na avaliação quantitativa de formas amastigotas, o índice parasitário foi significantemente mais elevado na BI em relação à BE, assim como o número de formas amastigotas por campo e número de formas amastigotas por vacúolo.

 

 

Discussão

 

Neste artigo, buscamos responder qual o melhor material a ser coletado para o exame direto (imprint ou raspado) e, no caso do raspado, qual o melhor local para ser realizado (BI ou BE da lesão ulcerada).

 

O exame direto, embora largamente utilizado para o diagnóstico de LC, é um método de baixa sensibilidade. Entretanto, é possível que sua sensibilidade aumente com o maior número de lâminas examinadas por paciente e com o maior número de campos examinados por lâmina.

 

No estudo de Mello (2011), a sensibilidade variou de 42,5%, quando consideramos apenas a leitura da lâmina do raspado da BE, até 77,5%, quando consideramos a leitura das três lâminas de cada paciente (imprint e raspados da BI e BE). A leitura de cerca de 1.500 campos microscópicos foram suficientes para detectar 93% e 92% dos casos positivos nas lâminas de imprint e da BI, respectivamente.

 

Adicionalmente, Mello (2011) investigou a intensidade da dor gerada pelo raspado, realizado sem anestesia. Neste estudo, a intensidade da dor informada pelo paciente foi semelhante nos raspado da BI e BE. O procedimento foi bem aceito pela maioria dos pacientes e fácil de conduzir em indivíduos de diferentes idades e com lesões em diferentes localizações.

 

No estudo de Thomaz (2020), o raspado da BI das lesões de LC também apresentou melhor desempenho no exame direto, assim como na quantificação da carga parasitária de lesões ulceradas LC. O raspado de BI apresentou carga parasitária de Leishmania (V.) braziliensis na qPCR mais elevada que as amostras de BE e imprint. Entretanto, não foi observada diferença estatisticamente significante entre BE e imprint. Estes resultados poderiam ser explicados pelo fato de que os fragmentos de tecido utilizados na preparação do imprint foram obtidos por biópsia, com punch 5 mm, que costuma englobar 2/3 de BE e 1/3 de BI da lesão. Outra possível explicação seria o fato de que o raspado na BI da lesão permite a coleta de amostra de região superficial da derme, que contém quantidade maior de DNA parasitário em relação à derme inferior e hipoderme. Na realização do imprint, são utilizadas justamente essas regiões mais profundas dos fragmentos teciduais para realizar a “impressão em lâmina”, o que deve elevar proporção de DNA humano em relação ao DNA parasitário nessas amostras.8,14,19,20

 

Como regra, amostras com alta carga parasitária apresentaram maior quantidade de caselas positivas pelo exame microscópico. Pelo imprint foi detectado um menor número de caselas positivas no exame direto quando comparado à BI. Paradoxalmente, a sensibilidade do imprint foi superior a do raspado da BI, pois permitiu o diagnóstico de um maior número de pacientes pelo exame direto.8,14 A sensibilidade é um parâmetro importante na escolha de um método diagnóstico. A maior sensibilidade do imprint à microscopia poderia ser explicada pelo fato que as amostras de tecido empregadas na sua preparação terem sido submetidas previamente à limpeza com gaze estéril para retirada do excesso de sangue. Talvez, a menor quantidade de artefatos tenha facilitado a visualização das formas amastigotas nas lâminas de imprint quando comparadas com as lâminas confeccionadas com esfregaço de material obtido por raspado. Estas últimas costumam apresentar debris celulares e hemácias que dificultam a leitura, principalmente as lâminas confeccionadas com material obtido por raspado da BE da lesão.2,3,8

 

Considerando que o imprint é um procedimento que necessita da realização de biópsia, um procedimento cirúrgico realizado por médico e que envolve anestesia e sutura, sua utilização em áreas endêmicas torna-se limitada e pouco prática. Opcionalmente, o uso do raspado na rotina de diagnóstico apresenta vantagens, por ser uma técnica simples, pouco invasiva, bem tolerada pelos pacientes, que não requer anestesia e que pode ser realizada repetidas vezes, por profissional não médico, em áreas endêmicas sem muitos recursos.8,14 Os resultados sugerem que o raspado da BI da lesão seja o método indicado para coleta de amostras com fins de diagnóstico por exame direto ou por métodos moleculares.

 

 

Referências Bibliográficas: 

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Colaboraram

- Cintia Xavier de Mello. Farmacêutica, Mestre em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz) e Doutora em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas pelo INI/Fiocruz. Atualmente é coordenadora do laboratório de referência para o diagnóstico molecular das leishmanioses do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

- Caio Thomaz de Lima e Silva. Farmacêutico, Mestre em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas pelo INI/Fiocruz.  

 

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