Como diagnosticar uma possível intoxicação por metanol ou etilenoglicol?

Como diagnosticar uma possível intoxicação por metanol ou etilenoglicol?

Antes do novo coronavírus (COVID-19) roubar todas as atenções das mídias nacional e internacional, os casos de intoxicação por etilenoglicol secundários à contaminação da cerveja Belorizontina certamente foram um dos temas de maior repercussão dentro da área médica no noticiário brasileiro. Recentemente, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais informou que chega a seis o número de mortos por suspeita de intoxicação por monoetilenoglicol ou dietilenoglicol após o consumo da cerveja da Backer. O número de casos suspeitos permanece 30. Dos seis óbitos, apenas um teve o diagnóstico de intoxicação por dietilenoglicol confirmado.


Os médicos de Minas Gerais, especialmente da regional da Sociedade Brasileira de Nefrologia, fizeram um trabalho meticuloso para reunir os fatos e formular essa hipótese diagnóstica, para, a partir daí, encaminhar as denúncias para as autoridades competentes.


Intoxicações exógenas são sempre um desafio para os médicos, visto que nem sempre são lembradas no diagnóstico diferencial. A questão que venho levantar é: você, profissional da saúde como os colegas de Minas Gerais, teria pensado nessas hipóteses diagnósticas diante de um caso como esse? Como levantar uma suspeita dessa? Esse caso teria passado despercebido por outro diagnóstico, como sepse, por exemplo?


O dietilenoglicol é um composto orgânico da família dos álcoois. É um líquido viscoso, de sabor doce, incolor, inodoro, com peso molecular de 106 Da e completamente solúvel em água. Sua meia-vida é de cerca 4 h, mas ela se prolonga quando medidas terapêuticas interferem em seu metabolismo. É um composto químico bastante versátil, com múltiplas aplicações industriais, incluindo a produção de plásticos, produtos de higiene, produtos automotivos e solventes. Embora algo inebriante, o composto original é praticamente atóxico. No entanto, sua biotransformação dá origem a metabólitos de elevada toxicidade.


Após a ingestão, o dietilenoglicol é rapidamente absorvido e distribuído no volume da água corporal total. A maior parte é excretada inalterada na urina. A fração remanescente é metabolizada em uma série de reações oxidativas no fígado (e em menor grau nos rins). O dietilenoglicol é metabolizado em 2-hidroxietoxiacetaldeído pela enzima álcool desidrogenase, depois em ácido 2-hidroxietoxiacético pelo aldeído desidrogenase, podendo ser oxidado adicionalmente em ácido diglicólico. Em roedores, a meia-vida inicial de eliminação é curta (aproximadamente 3,5 h), e o comportamento em humanos parece ser semelhante. Isso determina um tempo rápido para geração de metabólitos tóxicos. Na maioria dos casos que chega à atenção dos serviços de saúde, já se passaram mais de 48 h da ingestão e a maior parte do dietilenoglicol já foi eliminado pela urina ou biotransformado. A coingestão de dietilenoglicol com etanol determina competição na metabolização via álcool desidrogenase, alentecendo a biotransformação. Esse aspecto pode ser explorado como medida terapêutica para ganhar tempo suficiente para permitir a eliminação do dietilenoglicol intacto pelos rins ou por diálise.


Ao procurarem os serviços médicos, esses pacientes se apresentaram com sintomas neurológicos, como tetraparesia e paralisia facial, e insuficiência renal aguda instalada, grave, necessitando de suporte dialítico. Provavelmente, sintomas gastrintestinais, comuns nos primeiros dias de intoxicação por esses álcoois, precederam a procura pelos serviços de saúde.


O que chamou a atenção dos bons médicos que conectaram esses sinais e sintomas e chegaram a esse diagnóstico? Além de dados epidemiológicos, como o surgimento de casos semelhantes em localidades próximas e, de alguma maneira, relacionados, a presença de acidose metabólica grave com ânion gap aumentado, associada ao quadro clínico, foi a pista para o diagnóstico. A presença de insuficiência renal aguda com acidose metabólica com ânion gap elevado e, especialmente, aumento do gap osmolar são fortes indicativos de intoxicação exógena.


Gap osmolar é definido como a diferença entre a osmolalidade sérica medida por um osmômetro e a osmolalidade calculada pela fórmula abaixo:


2 × [Na+] + (glicose/18) + (ureia/6)


Obs: natremia em mEq/l e outras variáveis em mg/dl.


Valores considerados alterados são maiores do que 10 a 20 mOsm/kg H2O e sugerem a presença de alguma substância osmoticamente ativa que pode estar contribuindo para o quadro clínico, como um álcool tóxico.


A fórmula do ânion gap é bastante conhecida, mas deve ser sempre lembrada e praticada, especialmente em serviços de emergência:


Ânion gap = (Na+ + K+) – (Cl- + HCO3-)


Por causa de sua baixa concentração no meio extracelular, o K+ é frequentemente omitido dos cálculos. Os valores de referência para a maioria dos laboratórios são 12 ± 4 mEq/l (se o K+ é considerado) e 8 ± 4 mEq/l (se o K+ não é considerado).


Bibliografia


Backer admite presença de dietilenoglicol em cervejas e diz não ter como arcar com despesas médicas. O Globo. 5 mar. 2020. [Acesso em 20 mar 2020] Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/backer-admite-presenca-de-dietilenoglicol-em-cervejas-diz-nao-ter-como-arcar-com-despesas-medicas-1-24287757.


Garcia R, Bastos C. Investigação sobre cerveja Backer faz um mês sem achar culpados. O Globo. 8 fev. 2020. [Acesso em 20 mar. 2020] Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/investigacao-sobre-cerveja-backer-faz-um-mes-sem-achar-culpados-1-24237369.


Schep LJ, Slaughter RJ, Temple WA, Beasley DM. Diethylene glycol poisoning. Clin Toxicol (Pjila). 2009;47(6):525-35.


Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). Nota técnica e orientações da Sociedade Brasileira de Nefrologia e seu Departamento de Injúria Renal Aguda, sobre Intoxicação por Dietilenoglicol. São Paulo: SBN; 2020. [Acesso em 20 mar 2020] Disponível em: https://arquivos.sbn.org.br/uploads/19a10e05-oficio-hoje.pdf.


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