“Compulsivo” não é sinônimo de “exagerado”

“Compulsivo” não é sinônimo de “exagerado”

Por Dr. Elie Cheniaux – Com fre­quência, o leigo usa o termo “compulsivo” de maneira equivocada para qualificar algum comportamento tido como exagerado ou excessivo. Infelizmente, não é raro vermos esse erro sendo cometido também por profissionais ou estudantes da ­área de psiquiatria ou saú­de mental. Para entendermos o que é um comportamento compulsivo de fato, é necessário explicar as etapas do processo volitivo e distingui-lo do comportamento impulsivo.


O processo volitivo é composto por quatro etapas: intenção ou propósito; deliberação; decisão; e execução. A título de exemplificação, vamos considerar o comportamento alimentar. Nesse sentido, a vivência subjetiva de estar com fome ou com vontade de comer representaria a primeira etapa. A segunda consistiria na comparação entre as diversas possibilidades de como saciar a fome – o ­quê, onde e quando comer –, e incluiria a opção de não comer. A terceira seria a escolha de uma dessas possibilidades; e a quarta, o ato de comer.


No comportamento impulsivo, o in­di­ví­duo vai direto da primeira para a última etapa, pulando a deliberação e a decisão. Ele age sem pensar, reagindo de maneira imediata a um impulso ou estímulo. É o que acontece quando nos deparamos com uma deliciosa barra de chocolate e a devoramos, com grande prazer, na mesma hora, sem titubear. A tentação é tão grande que não nos detemos um segundo sequer para analisar se devemos ou não comer o doce. Quando, enfim, pensamos no assunto, o chocolate já está no estômago. O sentimento de culpa só vem depois.


O comportamento compulsivo, ou compulsão, por sua vez, caracteriza-se por um prolongamento patológico da etapa de deliberação do processo volitivo. Representa uma ação a que o in­di­víduo se sente compelido a rea­li­zar, no entanto, ao contrário do que ocorre no comportamento impulsivo, a execução não se dá de imediato, mas somente após intensa resistência interna contra a rea­li­zação do ato. Este seria o caso de um in­di­víduo obeso com diversos problemas clínicos decorrentes do excesso de peso que ganha uma barra de chocolate. Como no exemplo anterior, a tentação é gigantesca, mas, neste caso, o nosso gordinho consegue, em um primeiro momento, resistir. Só que ele passa os minutos ou horas seguintes em total sofrimento, pensando incessantemente na barra de chocolate e, ao mesmo tempo, fica considerando os malefícios à sua saú­de que ela poderia causar. Que dilema! Comer ou não comer, eis a questão! Mais tarde, ele acaba cedendo, mas, por um algum tempo, foi capaz de adiar a satisfação.


Os dois exemplos apresentados estão relacionados à alimentação, mas, dependendo de como se expressam, comportamentos como comprar, roubar, relacionar-se amorosamente, ingerir bebida alcoó­lica e usar substâncias psicoativas também podem ser classificados como impulsivos ou, alternativamente, compulsivos. Temos que fazer uma análise com base nas quatro etapas do processo volitivo para definirmos em qual conceito determinado comportamento se enquadra.


Embora os comportamentos impulsivo e compulsivo sejam diferentes um do outro, a tradução brasileira para o português do DSM-5 parece ignorar essa distinção, especificamente no capítulo sobre transtornos alimentares. A bulimia nervosa caracteriza-se, entre outras coisas, por ataques de hiperingestão alimentar, nos quais o in­di­ví­duo engole rapidamente uma grande quantidade de alimentos, com total perda do controle sobre a ingestão. Ele não consegue parar de comer e, muitas vezes, quando toda a comida ao seu alcance acaba, chega a revirar a lixeira em busca de restos de alimentos. Trata-se, sem dúvida, de um comportamento tipicamente impulsivo (e tipicamente nojento também).


No entanto, na versão brasileira do DSM-5, esses ataques de hiperingestão alimentar são chamados, estranhamente, de episódios de compulsão alimentar. No original, em inglês, a expressão é binge eating. O termo binge é mais adequadamente traduzido, especialmente se considerarmos os conceitos psicopatológicos, como “farra” ou “comilança” (ou “bebedeira”, quando se refere ao consumo de bebidas alcoó­licas). De fato, alguns dicionários traduzem binge como “compulsão”, mas a recíproca não é verdadeira: o termo correto em inglês é compulsion.


E ainda há, na versão brasileira do DSM-5, a categoria nosológica “transtorno de compulsão alimentar” (binge eating disorder), que, em essência, é semelhante à bulimia nervosa, exceto pela ausência de comportamentos compensatórios, como vômito autoinduzido, mas com os mesmos ataques de hiperingestão alimentar. Assim, paradoxalmente, no transtorno de compulsão alimentar, o comportamento alimentar não é compulsivo… É impulsivo!


Bibliografia


American Psychiatric Association. DSM-5: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.


Cheniaux E. Manual de psicopatologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2015.


 


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