COVID-19 e arritmias cardíacas

 COVID-19 e arritmias cardíacas

A primeira experiência mundial sobre a associação entre arritmias cardíacas e a Covid-19 vem, como só poderia ser, da China. Em um estudo com 138 pacientes hospitalizados em Wuhan, a incidência de arritmia cardíaca ocorreu em 17% dos casos, mas atingindo 44% dos indivíduos que necessitaram de internação em unidades de terapia intensiva.1 Os tipos de arritmias não foram especificados neste estudo.


Experiências posteriores, de países com proporções catastróficas da epidemia, como a Itália, Espanha e, agora, os Estados Unidos, revelam que a maior parte das arritmias cardíacas em pacientes nosocomiais da doença viral é decorrente do acometimento de vários órgãos, além dos pulmões, em virtude da síndrome de inflamação sistêmica que principia entre 5 e 7 dias após o início dos sintomas da infecção. Miocardite, síndrome coronariana aguda, tromboembolismo pulmonar, insuficiência renal, distúrbios eletrolíticos e do equilíbrio acidobásico constituem a miríade de causas diretas das arritmias cardíacas.


Mais recentemente, o papel do uso de cloroquina (CL) ou hidroxicloroquina (HI) no tratamento da Covid-19 tem angariado importância, mas também gerado polêmica. A importância se deve às evidências, ainda sem robustez científica, de benefícios no tratamento da doença, prevenindo a tempestade citoquímica em determinados grupos de pacientes, possivelmente aqueles com menos de 80 anos, e, também, se usada de forma mais precoce, 4 a 5 dias após o início e persistência dos sintomas.


A polêmica, fato não mais considerado anedótico, é em razão do seu uso indiscriminado, incluindo indivíduos com sintomas há menos de quatro dias e, como forma preventiva, naqueles assintomáticos com suspeita de contaminação. Este fato preocupa os gestores sanitários da crise epidêmica em função de desabastecimento dos medicamentos e devido aos efeitos colaterais sistêmicos dos mesmos.


A hidroxicloroquina é uma versão sintética posterior à cloroquina, com menor toxidade, e, aparentemente mantém os mesmos benefícios do fosfato de cloroquina no tratamento da Covid-19. Essas substâncias derivaram do quinino, assim como o antiarrítmico quinidina, estereoisômero do quinino e que possui estrutura química semelhante à da CL. Desta forma, assim como a quinidina, a CL e a HI possuem efeitos de bloquear os canais de sódio e os canais retificadores tardios de potássio em células cardíacas. O bloqueio da corrente rápida de sódio produz alentecimento e, eventualmente, bloqueio de condução elétrica nas fibras de Purkinje que compõem o sistema intraventricular de condução, em especial quando já existe acometimento prévio deste sistema. O bloqueio da corrente de cinética rápida dos canais retificadores tardios de potássio leva ao aumento da duração do potencial de ação da célula cardíaca e consequente dispersão transmural de refratariedade ventricular, podendo induzir taquicardia ventricular polimórfica e morte súbita. Este efeito eletrofisiológico é desvelado pelo prolongamento do intervalo QT do eletrocardiograma.


Estudos que avaliaram ocorrência de arritmias cardíacas em pacientes sob o uso de CL ou HI mostram incidência baixa de eventos arrítmicos predominando na literatura apenas relato de casos, majoritariamente de bloqueios da condução elétrica intraventricular. Todavia, esses estudos e relatos provêm de coortes populacionais com doença autoimune, principalmente lúpus eritematoso sistêmico e artrite reumatoide, com características demográficas e doses utilizadas dos fármacos, sendo diferentes dos pacientes com Covid-19.2-7 Mediante o uso de CL e HI em pacientes com Covid-19, devemos adotar, grosso modo, a mesma percepção de preocupação clínica e eletrocardiográfica que praticamos em relação aos pacientes em que administramos quinidina para tratamento de arritmias cardíacas.


O acompanhamento deve ser pautado na obtenção de eletrocardiogramas seriados, realizados antes do início da administração do fármaco e diariamente se o paciente estiver hospitalizado. Para pacientes ambulatoriais, o ECG deve ser realizado antes, 24 horas após e posteriormente com a maior frequência operacionalmente disponível. A monitorização deve ser reforçada em pacientes idosos, com alterações prévias do ECG e com insuficiência hepática ou renal. Cabe salientar que as Diretrizes Covid-19 do Ministério da Saúde de 6 de abril de 2020 recomendam o uso desses medicamentos somente para pacientes internados e com quadro moderado ou grave da doença.


Podemos dividir as arritmias potencialmente malignas causadas pelo uso de CL e HI em dois grupos: bloqueios atrioventriculares (BAV) e taquicardia ventricular polimórfica associada ao QT longo.


Para prevenção do BAV, atentar para os sinais de alerta que antecedem o início da administração dos fármacos:

1. Idosos

2. Presença de bloqueio de ramo prévio, em especial os bifasciculares (bloqueio de ramo esquerdo e bloqueio de ramo direito associado a bloqueio divisional esquerdo)

3. Insuficiência renal ou hepática.


Após início dos medicamentos, atentar para:

1. Surgimento de novos bloqueios intraventriculares

2. Alargamento do QRS

3. Prolongamento maior de 40 ms do intervalo P-R nos casos de QRS largo.


No surgimento de, pelo menos, um desses eventos, deve-se cogitar a imediata diminuição de doses ou a interrupção dos medicamentos.


Para prevenção da TV polimórfica, pode-se utilizar o escore de Tisdale (Tabelas 1 e 2), publicado em 2013 e que serve para qualquer fármaco com potencial de prolongar o intervalo QT.8


O limite de segurança aceito para eventual prolongamento do intervalo QT corrigido (Qtc) é inferior a 500 ms tanto para início ou manutenção de medicamentos com potencial de induzir TV polimórfica associada ao QT prolongado. Valores iguais ou maiores que 500 ms impedem a administração dos fármacos ou exigem sua interrupção. Em pacientes ambulatoriais de médio e alto risco, o registro eletrocardiográfico a distância por telemetria deve ser considerado.


Tabela 1. Escore de risco para prolongamento do intervalo Qtc associado a medicamentos.

Fatores de risco

Pontos

 ≥ 68 anos

1

Gênero feminino

1

Diurético de alça

1

Potássio sérico menor que 3,5 mEq/L

2

QTc ≥450 ms na admissão

2

Síndrome coronariana aguda

2

≥2 fármacos que prolongam QT

3

Sepse

3

Insuficiência cardíaca

3

Um fármaco que prolonga QT

3

Máxima pontuação

21

Estatística -C = 0,832


Tabela 2. Nível de risco para prolongamento do QTc >/= 500 ms.

 ≤6 pontos– baixo risco (prolongamento do Qtc para 500 ms ou mais: 15%)

 7-10 pontos – médio risco (prolongamento do Qtc para 500 ms ou mais: 37%)

 ≥11 pontos – alto risco (prolongamento do Qtc para 500 ms ou mais: 73%)


Referências bibliográficas

1. Wang D, Hu B, Hu C, et al. Clinical Characteristics of 138 Hospitalized Patients With 2019 Novel Coronavirus-Infected Pneumonia in Wuhan, China. JAMA 2020.

2. Verny C, de Gennes C, Sebastien P, Le Thi HD, Chapelon C, Piette JC, Chomette G, Godeau P. Heart conduction disorders in long-term treatment with chloroquine: two new cases. Presse Med 1992; 21: 800-4.

3. Jurik AG, Moller P. Atrioventricular conduction time in rheumatoid arthritis. Rheumatol Int 1985; 5: 205-7.

4. Rynes RI: Antimalarial drugs in the treatment of rheumatological diseases. Br J Rheumatol 36: 799-805, 1997.

5. Reuss-Borst M, Berner B, Wulf G, Muller GA. Complete heart block as a rare complication of treatment with chloroquine. J Rheumatol 1999; 26: 1394–1395. 

6.  Comin-Colet J, Sanchez-Corral MA, Alegre-Sancho JJ et al. Complete Heart block in an adult with systemic lupus erythematosus and recent onset of hydroxychloroquine therapy. Lupus 2001; 10: 59–62. 

7.  Guedira N, Hajjaj-Hassouni N, Srairi JE, el Hassani S, Fellat R, Benomar M. Third-degree atrioventricular block in a patient under chloroquine theraphy. Rev Rhum Engl Ed 1998; 65: 58–62. 

8. Tisdale JE, Jayes HA, Kingery JR, et al. Development and validation of a risk score to predict QT interval prolongation in hospitalized patients. Circ Cardiovasc Qual Outcomes. 2013; 6:479-87.

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