COVID-19 e imunidade de rebanho

COVID-19 e imunidade de rebanho

Denomina-se imunidade de rebanho quando a proporção de pessoas imunes a determinada doença infecciosa se torna grande o suficiente para fazer com que sua disseminação diminua na comunidade. Quanto maior for o número de pessoas imunes ou imunizadas, menor será a probabilidade de uma pessoa suscetível se infectar. Nesse caso, embora a doença continue na comunidade, sua propagação será cada vez mais lenta porque a cadeia de infecção foi, de certa maneira, quebrada.

 

Convém lembrar que o Dicionário de Epidemiologia, Saúde Pública e Zoonoses da USP1 registra o termo “imunidade de grupo”, em vez de “imunidade de rebanho”. Outros autores preferem as expressões “imunidade comunitária”, “imunidade da comunidade” ou “imunidade coletiva”. No entanto, “imunidade de rebanho” é a tradução literal da expressão inglesa herd immunity, amplamente utilizada em todo o mundo.

 

Para se chegar a essa imunidade de rebanho, quantas pessoas precisam estar imunes em uma comunidade? O número básico de reprodução, que se indica por R0 (lê-se R-zero), é o número médio de pessoas infectadas por um único indivíduo infectado introduzido em uma população completamente suscetível, ou seja, na qual ninguém é imune ou já foi infectado.

 

Por exemplo, quando R0 = 2 em uma comunidade totalmente suscetível, um indivíduo infecta em média 2 pessoas, e essas 2 infectam 4, que infectam 8 e assim por diante, em progressão geométrica (Figura 1).

 

Figura 1 Progressão do número de infectados quando R0 = 2. Em verde, pessoas suscetíveis; em vermelho, pessoas infectadas.

 

O número efetivo de reprodução, que se indica por ou Rt (lê-se R-t), é o número médio de pessoas infectadas no momento por um indivíduo infectado introduzido em uma população parcialmente imune. 

R0 estão, evidentemente, relacionados. Indicando a proporção de indivíduos imunes na população pela variável s, tem-se que:

 R = s R0  

 

Por exemplo, se R0 = 2 e um indivíduo infectado for introduzido em uma comunidade na qual metade da população seja imune (Figura 2), o valor de poderá ser assim obtido:

R = s R0 = 0,5 × 2 = 1

 

É importante notar o seguinte:

  • Quando R > 1, o número de novos casos da doença está aumentando (epidemia)
  • Quando R = 1, cada infectado causa uma nova infecção (endemia)
  • Quando R < 1, o número de novos casos da doença está diminuindo e eventualmente chegará a zero.

 

Figura 2 Progressão do número de infectados quando R0 = 2 e 50% da população é imune. Em verde, pessoas suscetíveis; em vermelho, pessoas infectadas; em azul, pessoas imunes.

 

A disseminação de uma doença infecciosa diminui quando R assume valores abaixo de 1, ou seja, a imunidade de rebanho ocorre quando R < 1. Como R = s R0, a imunidade de rebanho acontece quando s R0 < 1. Reorganizando

Dado que a proporção de pessoas suscetíveis na população é s, a proporção de não suscetíveis, ou seja, a proporção de imunes é (1 – s). Então, para que ocorra a imunidade de rebanho, é preciso que:

 

A primeira estimativa de R0 para a COVID-19 foi feita com os dados de 425 casos ocorridos no início do surto, em janeiro de 2020, na cidade de Wuhan, na China.2 Os cálculos indicaram que um indivíduo infectado introduzido em uma população completamente suscetível é capaz de infectar em média 2,2 pessoas (intervalo de confiança [IC] 95%: 1,4 a 3,7). Com base nessas estimativas iniciais, é razoável considerar, por precaução, R0 = 3. Então, a imunidade de rebanho será alcançada quando:

 

ou seja, quando cerca de 70% da população estiver imune. No entanto, considerando R0 = 2, valor que está dentro do IC para a média citada, a imunidade de rebanho seria alcançada quando 50% da população estivesse imune. 

 

A porcentagem de pessoas que precisam ter imunidade para desacelerar ou interromper com segurança uma doença infecciosa é chamada de limiar de imunidade de rebanho, em geral indicada pela sigla HIT (do inglês, herd immunity threshold). As estimativas de HIT são, por ora, muito fluidas. De qualquer modo, para os dois exemplos mencionados, em que R0 = 3 e R0 = 2, os valores de HIT são, respectivamente, 67% (ou cerca de 70%) e 50%.

 

A situação é grave. Não há tratamento específico para a COVID-19, doença que pode levar a óbito ou deixar sequelas ainda não identificadas. Também não há vacina. É verdade que os cientistas estão trabalhando com afinco para desenvolver uma vacina segura e eficaz para o SARS-CoV-2, mas isso leva tempo. É preciso concluir os testes com humanos e analisar os resultados. Se tudo der certo, ainda é preciso obter a aprovação dos órgãos governamentais competentes. Só depois disso se pode dar início a um processo de produção em massa, capaz de cobrir com segurança a população, e nesse momento a distribuição da vacina será o novo desafio. Até lá, o que se pode fazer?

 

Na melhor das hipóteses, enquanto a vacina não está disponível, haveria um esforço conjunto de toda a população, que tomaria cuidados redobrados com a higiene, fazendo uso correto de máscaras faciais e mantendo distanciamento físico contínuo por um período prolongado. Nesse caso, os níveis atuais de infecção poderiam ser mantidos ou, eventualmente, reduzidos. Porém, precisaríamos de liderança com moral suficiente para não minimizar o que está por vir.3 

 

Ironicamente, o confinamento, o distanciamento físico4 e o lockdown significam que boa parte da população não está ganhando imunidade, porque muitos não foram infectados; é por isso que o número de casos da doença aumenta quando o bloqueio é liberado. Uma alternativa seria implementar bloqueios intermitentes para manter os sucessivos picos da epidemia abaixo da capacidade crítica dos sistemas de saúde.

 

E o que se pode pensar como a pior hipótese? Sem a mão firme do governo federal em políticas públicas para retardar a disseminação do SARS-CoV-2 e, por conseguinte, sem a adesão da população a essas políticas, o vírus continuará infectando pessoas, porque a maioria da população ainda não foi infectada. Enquanto a vacina (há mais de 100 em desenvolvimento!) não chegar, só podemos esperar pela imunidade de rebanho – o que pode significar milhões de infectados e milhares de mortos. E não dá para duvidar dessa possibilidade.

 

Referências bibliográficas

  1. Dicionário de Epidemiologia, Saúde Pública e Zoonoses da USP. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/glossary/view.php?id=895978.
  2. Zhao S, Lin Q, Ran J et al. Preliminary estimation of the basic reproduction number of novel coronavirus (2019-nCoV) in China, from 2019 to 2020: a data-driven analysis in the early phase of the outbreak. Int J Infect Dis. 2020; 92:214-217.
  3. Regalado A. What is herd immunity and can it stop the coronavirus? Disponível em: www.technologyreview.com/2020/03/17/905244/what-is-herd-immunity-and-can-it-stop-the-coronavirus.
  4. Osterholm M. [Entrevista] COVID-19: straight answers from top epidemiologists who predicted the pandemic. Disponível em: www.bluezones.com/2020/06/covid-19-straight-answers-from-top-epidemiologist-who-predicted-the-pandemic.

 

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