COVID-19 e trato gastrintestinal

COVID-19 e trato gastrintestinal

O mecanismo de entrada proposto para o coronavírus (um vírus beta de fita simples, não segmentado, de sentido positivo) reside em sua capacidade de se ligar ao receptor de enzima conversora de angiotensina (ACE2), caracteristicamente um receptor de membrana extracelular expresso em células epiteliais. Em áreas do trato gastrintestinal (GI) com grande expressão de ACE2, como estômago, duodeno e reto, foi encontrada a proteína do capsídeo viral, cuja presença era notavelmente mais baixa em áreas desprovidas de receptores como o esôfago.

 

Dados recentes sugerem que a colonização viral por meio dos receptores ACE2 expressos no intestino resulte em eliminação viral nas fezes, na forma de diarreia, muito tempo após a resolução da infecção respiratória inicial. Apontam ainda para o fato de que a detecção viral nas fezes ocorre independentemente da presença de diarreia e pode ser tão comum quanto em 50% dos pacientes.

 

As implicações clínicas dessa constatação são profundas. Uma vez que foi revelado um possível modo de transmissão fecal, pode-se inferir que, além de tosse e febre comumente relatadas, os sintomas gastrintestinais devem ser monitorados como sinal de um estado ativamente infeccioso. Outro mecanismo de lesão envolvendo o GI incluiria a possibilidade de uma resposta inflamatória sistêmica ao intestino, secundária à viremia, que pode levar a uma alteração da microbiota intestinal. Isso, por sua vez, pode afetar a microbiota pulmonar através do "eixo intestinal-pulmão", aumentando o risco de se desenvolver a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA).

 

Relatórios iniciais da cidade de Wuhan, na China, mostraram que de 2 a 10% dos pacientes com COVID-19 apresentavam sintomas gastrintestinais. Além disso, verificou-se que os níveis de calprotectina fecal estavam elevados em pacientes com COVID-19 acometidos de diarreia: um indicador de respostas inflamatórias no intestino. Dentre os sintomas gastrintestinais, a diarreia parece ser o mais comum (3 a 34%), seguida dos menos relatados, que incluíam náusea (1 a 17%), vômitos (1 a 4%), dor abdominal (2 a 5%) e sangramento gastrintestinal (0 a 13%). A análise dessas taxas é de suma importância, pois supõe que a COVID-19 pode, de fato, se disfarçar de gastroenterite presumida até que os sintomas respiratórios predominem no paciente.

 

Foi demonstrado ainda que pacientes com COVID-19 apresentaram os três sinais da disbiose intestinal: diminuição da diversidade bacteriana intestinal, redução de bactérias simbiontes (anti-inflamatórias) e aumento de bactérias patogênicas. A atuação do microbioma na COVID-19 pode ser inibitória, pela supressão direta do vírus (recombinação gênica e/ou alteração da estabilidade da partícula viral) ou mesmo pela promoção da infecção viral, atuando em células T reguladoras.

 

Vale considerar que foi relatada maior mortalidade e morbidade por SARS-CoV-2 em pacientes idosos e naqueles com doenças crônicas subjacentes associadas a inflamações, como hipertensão, obesidade, diabetes melito e doença arterial coronariana. Curiosamente, nesses também foi reportada menor abundância de Bacteroidetes em relação a indivíduos saudáveis. Tais descobertas sugerem que a configuração do microbioma intestinal de um indivíduo pode afetar sua suscetibilidade e resposta à infecção.

 

Por fim, é possível considerar a melhoria da eficácia de futuras intervenções imunológicas no combate à COVID-19 com a modulação do microbioma intestinal. Para uma microbiota saudável, a abordagem pode incluir medidas que busquem melhorar a produção intestinal de butirato, promovendo interações microbianas por mudanças na dieta e redução de estados pró-inflamatórios.

 

 

Bibliografia

 

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