Datas e fatos na perícia médica

Datas e fatos na perícia médica

Se a diferença entre doença e incapacidade é o conceito fundamental da perícia médica previdenciária, a determinação dos momentos em que a doença e a incapacidade surgiram é o segundo mais importante. A aplicação desse conhecimento avança para muito além da concessão de benefícios previdenciários e tem sua utilidade em todas as análises de situações médicas que verificam se a doença considerada é anterior ou posterior à intervenção médica, como em auditorias de planos de saúde ou em ações indenizatórias e de responsabilidade civil.


O momento em que a doença tem início é bastante evidente em casos abruptos, como traumatismos; nessas situações, tanto a doença quanto a incapacidade se iniciam simultaneamente. A dificuldade não reside nesses casos, mas principalmente nos das doenças crônicas.


Na análise das neoplasias, embora seja prática dos planos de saúde admitir que a doença teve início no momento da biopsia, essa data pode e deve ser presumida como anterior à realização desse exame. Exceto nas neoplasias que são diagnosticáveis por meio de rastreamento em pacientes oligo ou assintomáticos, notadamente os tumores da mama, do cólon e do colo do útero, a doença manifesta-se clinicamente pouco antes de o tumor atingir a sua maior massa, fazendo-se notar pelo paciente e ensejando a realização de exames diagnósticos, habitualmente os de imagem. A biopsia excisional ou incisional será feita somente após os achados dos exames de imagem parecerem suspeitos de malignidade. Portanto, a doença neoplásica tem “início” quando o exame que motivou a realização da biopsia foi realizado.


Dessa forma, a colonoscopia feita para investigar a presença de sangue oculto nas fezes, a endoscopia digestiva alta realizada porque o paciente tem perda ponderal ou dor epigástrica, a radiografia de tórax que avalia o paciente com hemoptise, todos esses exames marcam a data do início da doença, mesmo que o “início real” seja anterior.


A incapacidade provocada pela doença é mais fácil de ser fixada, pois corresponde ao momento em que houve um agravamento da condição mórbida. Se voltarmos ao exemplo da neoplasia, a incapacidade surge quando começa a quimioterapia ou quando o paciente é submetido ao tratamento cirúrgico.


As dificuldades na determinação do início da doença e da incapacidade surgem quando se põem em questão processos fisiopatológicos relacionados e interdependentes, como se vê na nefropatia diabética ou na cirrose hepática causada pela infecção crônica pelo vírus C. A nefropatia diabética teve “início” no momento do diagnóstico da hiperglicemia crônica? A fibrose hepática “começou” quando houve a positivação do anticorpo anti-HCV?


Se considerarmos que a doença é a insuficiência renal, e não a hiperglicemia, fica claro que a nefropatia diabética “começa” quando a taxa de filtração glomerular fica abaixo de 89 ml/min. De modo semelhante, o diagnóstico da infecção crônica pelo vírus C é insuficiente para determinar o início da doença se o problema considerado é a cirrose e suas complicações. O agravamento da doença (ou seja, da incapacidade) coincide com a internação pelo sangramento variceal esofágico, enquanto o “início” da doença coincide com o diagnóstico da fibrose parenquimatosa, isto é, grau F1 ou mais da classificação METAVIR.


Embora a prática pericial mostre que esses conceitos nem sempre são aplicados com tanta facilidade quanto nos exemplos anteriores, o conhecimento da história natural das doenças aliado ao bom senso resolve a imensa maioria dos impasses.



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Bibliografia


Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, AIDS e hepatites virais. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para hepatite C e coinfecções. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. Disponível em: http://www.aids.gov.br/sites/default/files/anexos/publicacao/2015/58192/arquivoweb4_pcdt_17_05_2016_pdf_31085.pdf. Acesso em: 9 de junho de 2016.


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