Delirante Versus Deliroide

Delirante Versus Deliroide

O delírio representa uma alteração do conteúdo do pensamento. Segundo a definição clássica de Karl Jaspers, o pai da psicopatologia fenomenológica, é um juízo patologicamente falso, de conteúdo impossível, não suscetível à influência e caracterizado por uma convicção extraordinária. As ideias delirantes estão relacionadas a diferentes temas, sendo perseguição o mais comum: o doente, sem nenhuma razão plausível, acredita que o seguem, querem matá-lo ou lhe fazer algum mal.


Os delírios podem ser classificados em primários e secundários. Os primários não derivam de outra alteração psicopatológica, enquanto os secundários se originam de outros sintomas. São exemplos de delírios secundários as ideias de grandeza na mania, decorrentes de um humor eufórico, e as ideias de perseguição no delirium, decorrentes do rebaixamento do nível de consciência. Classicamente, os delírios primários ocorreriam apenas na esquizofrenia, embora nesse transtorno mental possam ocorrer também delírios secundários às alucinações. Por exemplo, o indivíduo julga ser Jesus Cristo porque as “vozes” que ele escuta lhe falam isso.


Um conceito próximo, porém diferente do de delírio, é o de ideia sobrevalorada (supervalorizada ou prevalente). A ideia sobrevalorada, que nasce da influência de estados afetivos intensos, também é falsa, mas o grau de convicção é bem menor do que no delírio, podendo ser corrigida diante de evidências objetivas. Ela é observada em situações patológicas, como as desconfianças no transtorno da personalidade paranoide, e também em indivíduos saudáveis, envolvendo, em geral, questões religiosas, filosóficas, políticas, científicas ou amorosas. Esse parece ser o caso de muitas pessoas que, ao verem o político que tanto admiram ser acusado de corrupção pelos procuradores da Operação Lava Jato, teimam em acreditar na sua inocência, apesar dos numerosos e fortes indícios em contrário. Outro exemplo é quando, na paixão amorosa, vemos o ser amado como totalmente desprovido de defeitos, um ser ideal. Depois nos casamos com ele e descobrimos que as coisas não são bem assim…


Para a maioria dos autores, “ideia delirante” e “delírio primário” são sinônimos, assim como “ideia deliroide” e “delírio secundário”. Todavia, as divergências terminológicas e conceituais não são raras. Em primeiro lugar, o brasileiro Leme Lopes critica o termo “deliroide” em sua etimologia, por misturar latim com grego, preferindo “deliriforme”, que, no entanto, ninguém além dele adota. Outros autores não usam a expressão “delírio secundário”, mas descrevem as ideias deliroides como o resultado de outras alterações psicopatológicas.


O espanhol Alonso Fernandez tem uma visão diferente, classificando a ideia delirante como um desvio qualitativo em relação ao normal, enquanto a ideia deliroide constituiria meramente um desvio quantitativo. Outro espanhol, Cabaleiro Goás, por sua vez, distingue ideia deliroide de delírio secundário. Para ele, a ideia deliroide é muito mais influenciável do que o delírio, seja ele primário ou secundário. Nesse sentido, exceto pela gênese, os delírios primário e secundário seriam idênticos.


Por fim, o brasileiro Nobre de Melo, seguindo Karl Jaspers, emprega um conceito mais amplo de ideia deliroide, que inclui não apenas os delírios secundários, mas também as ideias sobrevaloradas. Praticamente todos os demais autores separam as ideias sobrevaloradas das ideias deliroides, embora, para Alonso Fernandez, ideias sobrevaloradas muito intensas possam se transformar em ideias deliroides.


É verdade que há quem ache uma grande perda de tempo distinguir ideia delirante de ideia deliroide. Como ambas podem melhorar da mesma forma com o uso de um antipsicótico, essa distinção não teria qualquer relevância prática. Contudo, por trás desse arrogante pragmatismo, talvez se esconda um menor refinamento semiológico.


Para terminar, dois alertas. O primeiro é que, com a reforma ortográfica, tanto “ideia” como “deliroide” perderam o acento agudo.


Do segundo você já deve ter se dado conta. É que, na psicopatologia descritivo-fenomenológica, falta uniformidade quanto aos conceitos e termos entre os diversos autores, afetando algumas das principais alterações psicopatológicas, como o delírio. Portanto, se você estudar delírio em um livro e, depois, lendo outro, achar que está tudo diferente, não se preocupe. É assim mesmo, você não está delirando!


Bibliografia


Cheniaux E. Manual de psicopatologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2015.


Cheniaux E. Psicopatologia descritiva: existe uma linguagem comum? Rev Bras Psiquiatr. 2005; 27:157-62.


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