Desafios do cuidado em saúde
- 19 de dez de 2017
Por Dr. Pedro Ivo De Marqui Moraes – Eu ensaiava mentalmente algumas expressões em inglês enquanto observava as identificações das diversas nacionalidades nas mesas ‒ Malásia, Jamaica, Egito, Alemanha, Inglaterra, Turquia, México, Paquistão, entre outras ‒, cujos representantes em instantes se reuniriam no Encontro Anual de 2015, promovido pelo Colégio Americano de Cardiologia em Washington, capital dos EUA.
O objetivo do evento era ambicioso: discutir e desenvolver ações de liderança e debater, mesmo que brevemente, os principais desafios do cuidado em saúde que cada país enfrentava. Eu estava junto com o “time dos brasileiros”, médicos cardiologistas com quem teria o prazer de compartilhar aquela experiência única. Relevei com humor amarelo uma provocação em tom jocoso e competitivo de um membro do “time alemão” sobre o fatídico 7 a 1, enquanto estávamos no café, e despretensiosamente tomei meu assento.
Não tinha a intenção nem a formação mais adequada para discutir profundamente sobre políticas de saúde pública e privada, tampouco sobre estratégias organizacionais da complexa teia que envolve os cuidados em saúde. Mas compartilhar os desafios que cada representante internacional abordou durante o Encontro é tornar pública uma experiência das mais enriquecedoras, e que pode, no mínimo, levar à reflexão.
Tudo começou com uma breve apresentação dos representantes para expor ao grupo os “principais desafios” no cuidado em saúde de cada país. Contradições, dificuldades e estratégias resolutivas em saúde são muito mais universais do que imaginamos, tendo sido repetidas diversas vezes com o passar dos discursos. As atividades posteriores, de dinâmica de grupo, análises de perfis de liderança e palestras com professores renomados da Cardiologia norte-americana, ainda que instigantes, perderam o palco principal. Bom mesmo foi ouvir um pouco da realidade e experiência de cada país.
Por ordem alfabética de discursos, o Brasil se apresentou logo após a Austrália. Expusemos com clareza alguns dos mais profundos desafios do cuidado em saúde no país. A cruel discrepância entre os sistemas público e privado de saúde foi passo obrigatório, em diferentes níveis: atenção básica e ambulatorial e acesso a procedimentos de alta complexidade. Especialmente no tratamento do infarto agudo do miocárdio, essa diferença é abismal, refletindo em taxas inaceitavelmente altas de mortalidade.
Outras questões abordadas foram a desigualdade na distribuição territorial de serviços de saúde no Brasil, a dificuldade no acesso aos centros médicos de alta complexidade, a espera nas longas filas para procedimentos cirúrgicos, os desafios no processo de formação médica e no acesso aos programas de residência. Sabíamos que para debater profundamente temas tão complexos teríamos que dispor de pelo menos algumas horas ‒ ou semanas. Mas o propósito era primordialmente sintético e expositivo. A reflexão é infinita.
Do ponto de vista geográfico e sociopolítico, a distribuição desigual de serviços em saúde no Brasil é comparável à de países como México, Austrália e Turquia. Regiões menos populosas, rurais, de difícil acesso ou em pequenas cidades sofrem com menor concentração de médicos, equipes de saúde e disponibilidade de centros de tratamentos cirúrgicos e intervencionistas. Nesse contexto, diferentes políticas de incentivo foram abordadas, desde questões de imigração médica até incentivos governamentais para distribuição mais homogênea dos profissionais e dos serviços de saúde. No Brasil, o exemplo mais recente é o programa “Mais Médicos”, que visa, entre outros objetivos, levar equipes de saúde completas por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF), a lugares onde o acesso é restrito ou inexistente, a despeito de alguns vieses, cuja análise mais profunda não me cabe neste texto. Programas similares existem também nesses países mencionados.
Propôs-se uma grande discussão acerca do paradigma da saúde pública como direito universal, e da consequente dificuldade de tornar concretas as ideias do papel. A Inglaterra, por exemplo, referência de qualidade em saúde pública, tem enfrentado problemas com filas para procedimentos cirúrgicos, remuneração de profissionais de saúde e necessidade de reestruturação da atenção primária.
O “time” de Israel mostrou que o sistema público de saúde, apesar de muito bem estruturado e eficaz, encontra resistência de uma parcela considerável da população que, mesmo contribuindo com impostos, prefere recorrer ao setor privado para escolher seus médicos e hospitais de referência. Os EUA vivem uma discussão acalorada na tentativa de socializar o acesso a serviços médicos para a parcela da população incapaz de arcar com os seguros de saúde e que atualmente têm que recorrer aos hospitais filantrópicos e de comunidade, que por sua vez também enfrentam problemas orçamentários e de qualidade na assistência.
O “time da Alemanha” levantou questões como a altíssima competitividade entre equipes médicas, que muitas vezes geram grande estresse emocional. Além de potenciais conflitos existentes entre médicos e enfermeiros, em parte devido à grande autonomia que a equipe de enfermagem conquistou no país (certamente, um ponto positivo no aprimoramento do cuidado em saúde). Já os japoneses seguem uma estrutura de saúde regionalizada, estimulando a formação e atuação de médicos nas universidades e hospitais limitados em cada província. A “regionalização”, inclusive, é uma diretriz constituinte do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, e pressupõe um cuidado em saúde organizado e limitado a micro e macrorregiões, dentro das quais o sistema de referência e contra referência de pacientes obedece a critérios de hierarquização conforme a complexidade de cada caso.
Os chineses destacaram o baixo repasse do produto interno bruto (PIB) para a saúde ‒ algo em torno de 5%. Esse percentual é inferior até mesmo ao índice brasileiro, o que dificulta a gestão em saúde pública. Em consequência, parte das avaliações dos especialistas chineses é setorizada e de curta duração: nada de falar de dor no joelho ou insônia para o médico que vai avaliar sua dor de estômago na consulta cronometrada. Pode parecer familiar? Vivemos um movimento de superespecialização na Medicina, mas quanto mais nos distanciarmos do conceito do cuidado centrado no indivíduo e da abordagem integrativa, mais complexos e falhos serão os processos diagnósticos e terapêuticos.
A evolução é caminho obrigatório. Otimizar a gestão em saúde, pública ou suplementar, representa um dos maiores desafios. No âmbito do serviço público, onde exerço grande parte das minhas atividades, o cenário é emergencial. Sofrer com redução de repasse governamental aos hospitais públicos e universidades, diante de notícias tão frequentes de corrupção e desvios de verbas, é revoltante. O que nos resta, então, é o forte sentimento de que podemos fazer bem, pois capacidade técnica e humana temos de sobra.