Dor abdominal é sempre um desafio

Dor abdominal é sempre um desafio

Por Dra. Maria de Fátima Azevedo – Um homem branco, 58 anos, sobrepeso, natural de Pernambuco, marceneiro, morador da Baixada Fluminense, é levado ao pronto-socorro por amigos no final de uma tarde de domingo.


Q. P.: “Dor intensa na barriga e ânsia de vômito”.


H.D.A.: O paciente informa que estava bem e, de súbito, sentiu dor intensa no epigástrio cerca de 2 horas após começar o churrasco com os amigos. Relatou também náuseas intensas, embora não tenha vomitado. Refere que a dor melhora quando fica em pé e inclina o corpo para frente. Queixa-se também de palpitação. Ao ser questionado, respondeu que só urinou uma vez desde que começou a dor e não sentiu dor. Nega eliminação de flatos.


H.P.P.: Viroses comuns da infância (sarampo, varicela, caxumba). Apendicectomia aos 30 anos. “Verminoses” (não sabe informar o nome da medicação usada). Nega alergias. Hipertenso há cerca de 20 anos (uso irregular de hidroclorotiazida e captopril).


H. Familiar: os pais morreram na infância, não sabe informar a causa.


H. Social: tabagista (20 a 30 cigarros/dia há 40 anos). Etilista habitual (1 a 2 garrafas de cerveja por dia). Vive em comunidade.


Ao exame físico, apresentava fácies de dor, diaforético, acianótico, mas sentia dificuldade de deitar para o exame do abdome devido a dor. Pele mosqueada. T. Axilar = 38oC, PA = 200 ´ 110 mm Hg (sentado), FC = 110 bpm, RCT 2T, sem sopros. Diminuição do murmúrio vesicular em base esquerda e roncos difusos. Abdome protruso, distensão com defesa à palpação do epigástrio, descompressão dolorosa. MMII, varizes de calibre médio. Micose interdigital nos pés.


Nesse ponto quais seriam as hipóteses diagnósticas?


Úlcera péptica


Aneurisma dissecante


Cólica renal


Colecistite aguda


Pancreatite aguda


Foram solicitados: hemograma completo, glicemia, amilase e lipase séricas, provas de função hepática, creatinina, rotina de abdome agudo e ultrassonografia à beira do leito.


Foi iniciada hidratação venosa (250 ml/h de soro glicofisiológico a 5%) e administrado captopril 25 mg SL e furosemida 1 ampola IV. Também foi aplicada uma ampola de dipirona e metoclopramida IV.


Lembrar que a punção venosa para coleta de sangue, realizada imediatamente após ou durante a administração de dipirona, pode levar a resultados falso-baixos da lipase.



Evolução


Ultrassonografia não revelou aumento do calibre da aorta abdominal, nem cálculos na vesícula biliar.


O hemograma completo mostrou aumento do hematócrito e leucocitose, amilase = 300 U/L e lipase = 120 u/L; glicemia = 160 mg/dL; alteração inespecífica das transaminases, creatinina = 2,4 mg/dL.


A rotina de abdome agudo descartou perfuração/obstrução intestinal, mas revelou calcificações no pâncreas. Discreto derrame pleural à esquerda. Atelectasias em bases. Apagamento do psoas foi questionado.


O paciente mostrou melhora evidente do desconforto em cerca de 2 horas. Não se apresentava mais diaforético e relatou melhora das náuseas e da dor abdominal.


Conduta


Dieta zero (até a dor desaparecer e os exames estarem normalizados por 48 horas). Hidratação venosa. Antibióticos (existem recomendações fortes e alta qualidade de evidências, são prescritos para infecção extrapancreática, tais como colangite, infecções cateter-relacionadas, bacteriemia, infecção urinária, pneumonia).


Foi feito o diagnóstico de pancreatite aguda.


Critérios diagnósticos de pancreatite aguda


O diagnóstico de pancreatite aguda é estabelecido pelo achado de dois de três seguintes critérios:


– dor abdominal compatível com pancreatite;


– amilase sérica e/ou lipase sérica mais de três vezes o limite superior da normalidade;


– achados característicos nos exames de imagem do abdome.


A TC contrastada e/ou a RM do pâncreas devem ser reservadas no caso de dúvidas em relação ao diagnóstico ou quando o paciente não melhora nas primeiras 48 a 72 horas após a entrada no hospital. Outra indicação seria a investigação de complicações.


O paciente evoluiu bem, embora tenha se queixado muito por não poder fumar nem beber durante os três dias que permaneceu no PS.


A propósito da pancreatite aguda


A etiologia da pancreatite aguda pode ser estabelecida facilmente na maioria dos pacientes. A causa mais comum é litíase biliar (40% a 70%) e o etilismo (25% a 35%). A ultrassonografia (US) deve ser realizada em todos os pacientes com pancreatite aguda para pesquisar colelitíase. Se realmente houver cálculos biliares, o paciente deverá ser encaminhado para colecistectomia a fim de prevenir episódios recorrentes e potencial sepse.


A pancreatite por cálculo biliar é, habitualmente, um evento agudo e desaparece quando o cálculo é eliminado.


A pancreatite induzida pelo etanol manifesta-se, com frequência, como um espectro que vai de episódios bem definidos de pancreatite aguda até alterações irreversíveis crônicas e silenciosas. Esse diagnóstico só deve ser aventado se houver uma história de etilismo significativo (> 50 g de etanol por dia) por mais de 5 anos. A pancreatite aguda clinicamente evidente ocorre em menos de 5% desses etilistas, portanto são prováveis outros fatores sensibilizadores para o efeito do etanol, tais como tabagismo e fatores genéticos.

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