Dor abdominal e uma surpresa

Dor abdominal e uma surpresa

Mulher de 38 anos de idade, negra, magra, natural do Rio de Janeiro, moradora de Belford Roxo, procurou unidade de pronto atendimento (UPA) por causa de dor surda intermitente no quadrante superior direito do abdome e na região lombar. Ela informou que sente esse desconforto há quase 3 meses. Também relatou febre, embora sem aferi-la. Usou antipiréticos por conta própria com pouca melhora do quadro. Nas últimas 2 semanas, passou a apresentar náuseas, diminuição do apetite e icterícia. Referiu perda de peso nesse período (não quantificou, mas informou que todas as calças compridas estavam muito frouxas). Negou alteração do ritmo intestinal, melena, acolia e/ou hematêmese.


História patológica pregressa (HPP) indicou colecistectomia aos 30 anos. Gesta V Para III Aborto II (espontâneos). Separada do pai de seus filhos há aproximadamente 3 anos. Duas cesarianas e colocação de DIU há 4 anos. Sabidamente hipertensa há 10 anos. Usa 50 mg/dia de atenolol + hidroclorotiazida 25 mg/dia.


Na história social negou tabagismo. Etilista (cerveja nos fins de semana).  Informou que alguns vizinhos tiveram tuberculose há alguns anos, mas ela afirma que não apresentou sintomas e nem procurou assistência médica na época.


No exame físico, pressão arterial (PA) = 110 × 80 mmHg, frequência cardíaca (FC) = 88 bpm, frequência respiratória (FR) = 24 incursões/min, temperatura axilar = 38,8oC. Ictérica.  Apresentou diminuição global do murmúrio vesicular e macicez à percussão do terço inferior do pulmão direito. Ritmo cardíaco regular em dois tempos (RCR 2T).  Mostrou dor à palpação do abdome, sobretudo do hipocôndrio direito, bem como hepatomegalia (cinco dedos transversos abaixo do gradil costal). A peristalse está discretamente aumentada.


Foram solicitados hemograma completo, velocidade de hemossedimentação (VHS), bilirrubina, fosfatase alcalina e radiografia de tórax. Os resultados dignos de nota são:

  • VHS = 70 mm/h (normal: < 20 mm/h)
  • Bilirrubina total = 25 mmol/h (normal: 5,1 a 17 mmol/h)
  • Fosfatase alcalina = 350 UI/l (normal: 20 a 140 UI/l)
  • Radiografia de tórax: derrame pleural à direita com embotamento do ângulo costofrênico.

O líquido pleural foi aspirado e analisado. Também foram solicitados ultrassonografia de abdome, marcadores de hepatite, sorologia para HIV e VDRL. Coletaram-se amostras de sangue para cultura (bactérias e fungos).


A ultrassonografia revelou lesão expansiva no lobo direito do fígado. A tomografia computadorizada (TC) do abdome e da pelve mostrou múltiplas lesões hipodensas no lobo direito do fígado. Havia também uma coleção de líquido que se estendia posterolateralmente para o espaço perinéfrico.


Qual seria a etiologia mais provável dessas lesões na TC? O diagnóstico mais provável é o de abscesso, sobretudo se as lesões estiverem interconectadas e apresentarem paredes bem definidas.


Realizou-se laparotomia exploratória e material purulento foi drenado dos abscessos hepáticos. O líquido foi enviado para coloração de Gram, cultura e antibiograma, bem como coloração álcool-acidorresistente.


Enquanto os resultados dos exames não chegavam, iniciou-se antibioticoterapia de amplo espectro.


Finalmente, constatou-se que se tratava de abscessos hepáticos por Mycobacterium tuberculosis com extensão perinéfrica – tanto a coloração álcool-acidorresistente como o laudo histopatológico da parede dos abscessos.


Ponderações:

  • Derrames pleurais podem ser exsudatos ou transudatos, e os critérios de Light são usados para diferenciar esses processos
  • De acordo com esses critérios, um derrame pleural é exsudativo se atender a um dos seguintes: razão proteína pleural/proteína sérica > 0,5; razão do lactato desidrogenase (LDH) pleural/LDH sérico > 0,6; LDH pleural > 200 ou LDH pleural acima de 2/3 do limite superior da normalidade da LDH sérica
  • Tuberculose (TB) hepática é extremamente rara e ocorre em menos de 1% dos casos relacionados à enfermidade. A icterícia também é extremamente rara, consequente à linfadenopatia que comprime as vias biliares na porta hepática, à obstrução do ducto colédoco ou à estenose inflamatória porta

Para tratamento da TB hepática, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda associar isoniazida + rifampicina + pirazinamida + etambutol por 1 ano, embora haja, com frequência, sinais de melhora em 2 a 3 meses.


Evolução: iniciou-se esquema quadruplo para TB após a drenagem dos abscessos. Depois de 2 meses, o quadro clínico da paciente mostrou-se bem melhor e a TC de abdome indicou resolução completa dos abscessos.

Compartilhe: