Evidências de bons resultados com doses baixas antimoniato de meglumina por via sistêmica em pacientes leishmaniose cutânea
- 15 de out de 2018
Por Dr. Armando de Oliveira Schubach – Apesar da experiência satisfatória aos esquemas terapêuticos alternativos com antimoniato de meglumina para tratamento da leishmaniose cutânea (LC) no Rio de Janeiro, tais esquemas não têm sido adotados em outras regiões do país.1-12 Isso pode ser parcialmente explicado pela crença de que a utilização de subdoses de antimônio poderia implicar no desenvolvimento de resistência aos antimoniais, ou poderia ser um fator de risco para o desenvolvimento de leishmaniose mucosa (LM).13-16
A maior parte do antimônio pentavalente administrado é eliminada na urina nas primeiras 24 a 72 h (meia-vida 76 h), resultando em níveis séricos subterapêuticos em poucas horas.17-19 Assim, sugeriu-se que os esquemas de tratamento em séries, com intervalos sem medicação entre elas, seriam farmacologicamente infundados e que altas doses de antimônio (Sb) seriam necessárias para manter os níveis séricos.18 Um estudo posterior, embora tenha confirmado que mais da metade do Sb administrado seja eliminada na urina nos primeiros 3 dias, revelou que essa fase de excreção rápida (com meia-vida de 24 a 72 h) é seguida por uma fase lenta (com meia-vida > 50 dias). Desse modo, 150 dias após o término do tratamento, quantidades elevadas de Sb ainda podem ser detectadas no sangue, na urina e nos cabelos.20 O estudo também evidenciou, pela primeira vez in vivo, a conversão do antimoniato de meglumina na espécie iônica Sb5+ e sua biorredução para Sb3+.20
Esses resultados suportam a hipótese de que o Sb3+ formado pode ser responsável tanto pela toxicidade tardia do antimoniato de meglumina quanto por sua ação terapêutica.17,18,20 Tais resultados, associados ao achado de que a maior parte do antimoniato de meglumina é excretada na urina de forma praticamente inalterada, podem explicar porque uma baixa dose de antimoniato de meglumina pode resultar em eficácia terapêutica similar à dose padrão, 4 vezes mais elevada.20 Tal hipótese encontra suporte na observação que pacientes idosos que descontinuaram o tratamento devido a efeitos adversos continuaram a melhorar suas lesões durante o período sem medicação.6 Adicionalmente, não foram encontradas na literatura consultada referências quanto à concentração de Sb5+ alcançada na pele e mucosas durante o tratamento, nem se tais níveis teciduais diferem com as doses de 20 ou 5 mg Sb5+/kg/dia.
A observação de que os efeitos adversos ao antimoniato de meglumina costumam surgir na segunda ou terceira semanas de tratamento explica porque os esquemas intermitentes são mais bem tolerados que os esquemas contínuos, pois cada série termina com 10 dias, antes do surgimento ou agravamento dos efeitos adversos.14,20-22 Os 10 dias de intervalo sem medicação permitem que tais efeitos adversos regridam antes da reintrodução do antimoniato de meglumina. Adicionalmente, a conduta preconizada em casos de efeitos adversos que necessitem da interrupção temporária do tratamento é aguardar até a melhora dos efeitos adversos antes de reintroduzir o antimoniato de meglumina.14 Essencialmente, o tratamento intermitente seguiria essa mesma conduta, porém, antes que os efeitos adversos se manifestem ou se agravem.
A indicação de doses altas de Sb5+ baseia-se em evidências de que poderia haver indução de resistência com o uso de subdoses.15,16 Entretanto, é interessante notar que, em pacientes acima de 61 kg, o limite de 3 ampolas diárias implica doses inferiores aos 20 mg Sb5+/kg/dia recomendados.14,23,24 Nossos primeiros estudos com esquemas alternativos com antimoniato de meglumina foram desenvolvidos na década de 1980 e revelaram percentuais de cura semelhantes àqueles obtidos com doses mais elevadas, além de menor toxicidade, maior facilidade de execução e menor custo.1,3-5,21,25 Entretanto, foram publicados mais de uma década depois, pois incluíram longo tempo de seguimento dos pacientes para verificar a ausência de reativação das lesões cutâneas e o não acometimento tardio das mucosas.1,3-5
No Brasil, entre 2001 e 2013, foram notificados 337.336 casos de leishmaniose tegumentar americana (LTA) com 1.522 óbitos, o que representa uma letalidade de 0,45%.9,26 Considerando que a LTA não é uma doença ameaçadora à vida, essa letalidade é elevada, principalmente, quando comparada a outras doenças potencialmente letais, como tuberculose (2,05%) e leishmaniose visceral (6,56%).27,28 É possível que várias dessas mortes sejam consequências do tratamento com antimoniato de meglumina administrado na dose convencional de 20 mg Sb5+/kg/dia e sem monitoramento adequado de efeitos adversos.9
Levando em consideração a condição do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) como centro de referência, que recebe casos sérios e complicados de diferentes regiões brasileiras, seria esperado encontrar uma alta letalidade. Adicionalmente, se os esquemas alternativos com antimoniato de meglumina fossem inadequados, seria esperado encontrar uma alta incidência de reativações de lesões cutâneas e o desenvolvimento tardio de lesões mucosas. Um estudo longitudinal realizado no INI com pacientes de LTA ao longo de 13 anos (2001-2013) foi conduzido para verificar a letalidade relacionada ao tratamento, assim como a ocorrência de reativação das lesões cutâneas e o comprometimento tardio de mucosas. O antimoniato de meglumina foi o medicamento mais utilizado, em 753 (96,9%) pacientes. Desses, 692 (89,1%) foram inicialmente tratados com esquemas terapêuticos alternativos. O único óbito observado ocorreu em um paciente tratado com 20 mg Sb5+/kg/dia (letalidade 0,1%). Quarenta e cinco pacientes (31,2%) evoluíram com reativação das lesões após o primeiro curso de tratamento recebido no INI, e apenas 2 pacientes (0,25%) inicialmente tratados para LC evoluíram para LM. Apenas 4% abandonaram o tratamento.9 Em outro estudo realizado no INI, entre 2008 e 2011, observou-se associação significativa entre maior adesão ao tratamento e o uso de antimoniato de meglumina 5 mg Sb5+/kg/dia.29
Tanto a letalidade quanto a prevalência de casos de reativação de lesões e de casos de LM notificados na região Sudeste são similares às notificadas no Rio de Janeiro, onde o Estado está situado. Considerando que o INI atende cerca de 1/4 dos casos de LTA notificados no estado fluminense, incluindo a maioria dos casos mais complicados (tais como os casos referidos de reativação e de LM), é possível sugerir que o uso de esquemas alternativos com antimoniato de meglumina utilizados no INI não comprometeu esses índices no Estado do Rio de Janeiro, quando comparados com outros estados da região Sudeste, nos quais tais esquemas alternativos não são utilizados rotineiramente.9
Em 2010, um comitê de especialistas em leishmaniose atualizou as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) publicadas em 1990. Tal comitê concluiu que, além da LC não ser uma condição ameaçadora à vida, complicações mais sérias, incluindo a progressão para LM, são pouco frequentes. Portanto, os tratamentos para LC não deveriam pôr em risco a vida dos pacientes. Nos casos em que tais tratamentos fossem utilizados, os efeitos adversos deveriam ser monitorados.23,30
Em 2013, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) atualizou as recomendações da OMS para os serviços de saúde das Américas e destacou a necessidade de incorporar as evidências científicas disponíveis em cada país aos respectivos programas de controle nacionais.24 Em 2017, o Brasil adotou o antimoniato de meglumina por via intralesional (IL) como uma opção para o tratamento da LC, e reconheceu que esquemas terapêuticos com doses de 5 mg Sb5+/kg/dia durante 30 dias, de forma contínua ou intermitente, podem ser seguros e eficazes no tratamento da LC no Estado do Rio de Janeiro.14,10,31 Entretanto, ressaltou-se não ser essa uma recomendação nacional e a necessidade de haver ponderação na sua adoção, pois o estudo foi desenvolvido com pacientes infectados com os genótipos de Leishmania sp. circulantes no estado fluminense. No entanto, quando o uso de doses regularmente recomendadas for um risco para os pacientes devido às suas condições clínicas, doses mais baixas podem ser utilizadas.14
Diferentes estudos indicam que a população de L. (V.) braziliensis que circula no Estado do Rio de Janeiro apresenta um padrão genético homogêneo com baixa variabilidade, o que poderia estar associado a uma alta sensibilidade ao antimoniato de meglumina e explicar o sucesso terapêutico dos esquemas alternativos em pacientes infectados na região.3,5,32-35 A resposta terapêutica aos antimoniais pode variar em outros estados brasileiros, nos quais a LTA pode ser causada por diferentes espécies de Leishmania ou por subpopulações de L. (V.) braziliensis com elevada variabilidade genética.1,4,36,37
Em um estudo realizado no INI, investigou-se o polimorfismo genético de 44 cepas de L. (V.) braziliensis isoladas de pacientes com LC adquirida em diferentes estados brasileiros. Os pacientes foram classificados em dois grupos, de acordo com a resposta terapêutica ao tratamento inicial com antimoniato de meglumina: respondedores e não respondedores. Nenhuma associação foi observada entre LC adquirida no Rio de Janeiro ou em outros estados nem entre a condição de respondedor ou não respondedor ao tratamento inicial. Da mesma forma, nenhuma associação pode ser estabelecida entre um genótipo específico ou polimorfismo genético e a condição de respondedor ou não respondedor ao tratamento inicial. Foi possível identificar subpopulações de L. (V.) braziliensis geneticamente similares, porém, apresentando fenótipos distintos em relação à resposta terapêutica dos pacientes.35
Outro estudo revelou a existência de polimorfismo genético em 15 pares de isolados de L. (V.) braziliensis, obtidos dos mesmos pacientes com LC, antes do tratamento com antimoniato de meglumina (5 mg Sb5+/kg/dia ou por via IL) e após resposta insatisfatória ao tratamento ou reativação após uma resposta satisfatória inicial. Tais resultados poderiam indicar o surgimento de diferenciação na estrutura original dos parasitos, a qual poderia estar envolvida em mecanismos de resistência ao tratamento ou de reativação das lesões. Entretanto, 14 pacientes responderam adequadamente ao segundo tratamento a critério do médico-assistente, 9 com o mesmo esquema de antimoniato de meglumina, 4 com anfotericina B e 1 com pentamidina. Um paciente não retornou para avaliação.38
Um outro estudo avaliou a sensibilidade in vitro em pares de isolados de L. (V.) braziliensis obtidos de 7 pacientes com LC, antes do tratamento com antimoniato de meglumina (5 mg Sb5+/kg/dia ou por via IL) e após resposta insatisfatória ao tratamento ou reativação após uma resposta satisfatória inicial. O estudo de sensibilidade in vitro foi realizado nos 14 isolados de L. (V.) braziliensis para verificar a dose de antimônio necessária para matar metade dos parasitos (DL50), tanto na forma promastigota quanto na forma amastigota. As amostras isoladas após o tratamento apresentaram uma DL50 mais elevada que no pré-tratamento, sem significância estatística. Dos 7 pacientes, 6 responderam adequadamente ao segundo tratamento a critério do médico-assistente, 2 com o mesmo esquema de antimoniato de meglumina e 4 com anfotericina B. Um paciente não retornou para avaliação.54 No conjunto, os resultados de ambos os estudos não suportam a hipótese de que o tratamento com antimoniato de meglumina 5 mg Sb5+/kg/dia ou por via IL induz a seleção de cepas de L. (V.) braziliensis resistentes ao tratamento com antimoniato de meglumina, e sugerem que outros fatores podem influenciar o desfecho terapêutico em pacientes com resposta insatisfatória ao tratamento inicial.38,39
Em outro estudo caso-controle desenvolvido no INI, comparou-se a resposta ao tratamento com antimoniato de meglumina 5 mg Sb5+/kg/dia em dois grupos de pacientes com LTA: 72 do Estado do Rio de Janeiro e 36 que adquiriram a infecção em outros estados. Leishmania (Viannia) braziliensis foi isolada em 100% dos pacientes do Rio de Janeiro. Dos 21 isolados de obtidos de pacientes provenientes de outros estados, L. (V.) braziliensis foi identificada em 18 (86%), incluindo duas variantes isoenzimáticas; Leishmania (Leishmania) amazonensis foi identificada em 1 paciente e L. (V.) guyanensis em 2. Nenhuma diferença significativa foi encontrada entre os dois grupos quando se comparou a resposta terapêutica e a incidência de efeitos adversos. Após o tratamento inicial, foi observada uma resposta terapêutica favorável em 71% dos 108 pacientes. Entretanto, após um ou dois cursos adicionais com o mesmo esquema terapêutico, respectivamente, 87% e 90% dos pacientes encontravam-se com as lesões cicatrizadas. Efeitos adversos foram observados em 51% dos 108 pacientes, sem necessidade de interrupção definitiva do tratamento em nenhum caso.40 Esses resultados estão de acordo com outros estudos conduzidos no INI que incluíram pacientes de outros estados e sugerem que pacientes infectados com L. (V.) braziliensis, no Brasil, podem responder favoravelmente a uma baixa dose de antimoniato de meglumina, independente da região geográfica de origem.6,8,9,35
O tratamento com antimoniato de meglumina por via sistêmica pode levar a toxicidade importante e acarretar efeitos adversos potencialmente graves com risco de morte. Portanto, deveria ser evitado em crianças pequenas, idosos, indivíduos HIV positivos e aqueles com comprometimento hepático, renal ou cardiovascular.14,23 Embora a dose padrão de antimônio continue a ser o tratamento recomendado para LC, o tratamento com baixa dose de antimônio pode ser preferido quando a toxicidade for uma preocupação primária.14,23,10
Um ensaio clínico randomizado, controlado com a dose padrão e envolvendo centros de diferentes estados é necessário para verificar a utilidade do tratamento da LC com antimoniato de meglumina 5 mg Sb5+/kg/dia em outras regiões brasileiras.
Paciente pré-tratamento
Paciente após 60 dias de tratamento
Paciente após 150 dias após tratamento
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Colaboraram:
Maria Cristina de Oliveira Duque
Médica dermatologista. Mestre em Pesquisa Clínica pelo Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz).
Benivaldo Ramos Ferreira Terceiro
Médico otorrinolaringologista. Doutorando em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas pelo Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz). Pesquisador do INI/Fiocruz.
Cláudia Maria Valete-Rosalino
Médica otorrinolaringologista. Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz). Professora do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Maria Inês Fernandes Pimentel
Médica dermatologista. Doutora em Medicina (Dermatologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz). Médica da Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro.
Marcelo Rosandiski Lyra
Médico dermatologista. Doutor em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas pelo Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz). Pesquisador do INI/Fiocruz.
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