Febre Amarela no Ciclo Gravídico Puerperal

Febre Amarela no Ciclo Gravídico Puerperal

Ao longo dos últimos anos, devido a alterações climáticas, fluxos migratórios e ações pouco efetivas para a prevenção, doenças transmissíveis por mosquitos como dengue, chikungunya, zika e febre amarela (FA) passaram a ter grande relevância em todo o território brasileiro. No que diz respeito à FA, frente à ocorrência de mortes associadas, as autoridades sanitárias brasileiras têm adotado ações visando à prevenção e o controle. Algumas características de matas próximas às áreas urbanas como, por exemplo, na zona norte da cidade de São Paulo,[1] poderiam facilitar o retorno FA como uma doença urbana como no início do século passado. Ainda que sem evidências conclusivas, a situação não deixa de ser preocupante.


Considerando o cenário atual, a exposição durante a gestação e consequente infecção devem ser motivos de alerta, tendo em vista o potencial de grave comprometimento sistêmico que a doença determina. Deste modo, a seguir, serão discutidos alguns aspectos relacionados com os quadros clínicos no ciclo gravídico puerperal e com a vacinação nessas pacientes.


Aspectos etiopatogênicos e clínicos


O vírus da FA é um arbovírus RNA do gênero Flavivirus. O principal vetor urbano é o mosquito Aedes aegypti e o homem é o único hospedeiro com importância epidemiológica.[2] Após ser inoculado na circulação pela picada do transmissor, em poucas horas, o vírus ataca os linfonodos regionais e desaparece da circulação nas 24 h seguintes. Nesses locais ocorre replicação, liberando partículas virais para vasos linfáticos até a corrente sanguínea, iniciando a viremia, acometendo fígado (que é o seu principal sítio de ação), baço, coração, cérebro e outros órgãos.


O quadro típico tem evolução bifásica (período de infecção e de intoxicação), de início abrupto, com febre alta e pulso lento em relação à temperatura, cefaleia intensa, calafrios, náuseas, vômitos, mialgias, prostração, congestão conjuntival e fotofobia com duração média de 3 dias. Após esse período, a doença pode evoluir para a cura ou agravamento do caso.


Nas formas graves, há o período com sensação de melhora e cura iminente, em virtude da diminuição da febre, melhora da mialgia e da cefaleia. O período de remissão pode durar até 24 h, instalando-se a seguir piora do quadro. As náuseas se intensificam, os vômitos aparecem ou se agravam; aparecem as manifestações hemorrágicas e icterícia.


As hemorragias são geralmente encontradas em tegumento, gengivas e ouvido, podendo ocorrer hematêmese e melena. Acompanhando ou até mesmo antecedendo as hemorragias, há plaquetopenia, que pode chegar a menos de 20.000/mm3 de sangue. A plaquetopenia agrava os problemas de coagulação decorrentes de ativação do complemento e do consumo dos fatores de coagulação, caminhando para coagulação intravascular disseminada.


A icterícia (da qual resulta o nome da doença) se deve, sobretudo, ao aumento da bilirrubina direta, com elevação de enzimas hepáticas. A presença de encefalopatia constitui sinal de mau prognóstico. Por volta do quinto até o sétimo dia, pode-se instalar insuficiência renal com oligúria e anúria decorrentes de necrose tubular aguda. A recuperação é lenta e sem sequelas, porém a astenia, a indisposição e as dores musculares costumam perdurar por mais de 2 semanas.


O diagnóstico laboratorial pode ser realizado pelo isolamento do vírus em cultura, pelo PCR que pode identificar o RNA viral ou, ainda, por sorologia pelo método de ELISA para identificação de anticorpos específicos do tipo IgM.


Particularidades da gravidez


O diagnóstico de FA na gestação pode ser difícil, pois modificações fisiológicas ou patologias específicas da gravidez podem confundir ou interferir no diagnóstico precoce. Além disso, outros quadros virais podem apresentar sinais e sintomas semelhantes, tais como dengue hemorrágica, malária, leptospirose e hepatites virais agudas.[3]


No que diz respeito às doenças específicas da gestação, como a síndrome HELLP, atrofia hepática aguda e esteatose aguda do fígado podem confundir a definição clínica. Possivelmente, a condição com maior probabilidade de confusão serão as formas clínicas de pré-eclâmpsia, levando em conta que podem se apresentar com edema, cefaleia, oligúria, albuminúria, icterícia, comprometimento hepático e plaquetopenia. Assim, diante de situações definidas como síndromes hemolíticas urêmicas na gestação, a possibilidade de febre a amarela deve ser considerada até mesmo em áreas urbanas.


Quanto ao tratamento, não há recomendações específicas para a FA. Repouso e reposição de líquidos, tanto por via oral (se possível) ou parenteral, serão importantes para manter a perfusão sistêmica, incluindo o fluxo plasmático renal. Os quadros hemorrágicos devem ser tratados de forma individualizada com hemoderivados, tais como concentrado de hemácias, plasma fresco congelado, crioprecipitado e plaquetas. Sintomáticos serão importantes, como analgésicos (exceto o ácido acetilsalicílico) e antieméticos, como metoclopramida ou ondansetrona. Protetores gástricos podem ser utilizados para preservar a mucosa gástrica.


Quanto ao acometimento fetal, os quadros graves podem culminar com a morte fetal, sendo os riscos proporcionais à gravidade clínica materna. Além disso, pode ocorrer parto prematuro. Diante desta condição, as ações devem ser individualizadas, sendo a decisão pela tocólise pautada em função dos riscos maternos fetais apresentados. A equipe assistencial deve ter em mente que, em pacientes com coagulação intravascular disseminada (CIVD), o sangramento do parto, seja normal ou operatório, pode ser catastrófico. Do ponto de vista obstétrico, não há razões para a antecipação do parto, principalmente por cesárea eletiva, a não ser em condições de extrema gravidade, na qual o quadro materno é inexorável.


Vacinação na gestação e puerpério


Para mulheres que desejam planejar a gestação, a melhor forma de prevenção é receber a vacina pelo menos 1 mês antes da concepção. Levando-se em conta que a vacina é composta de vírus atenuado, ela é incluída na regra geral de que vacinas com essa característica não devem ser utilizadas na gestação.[4] No entanto, em situações epidêmicas ou quando não for possível mudar de áreas endêmicas, os benefícios da vacinação superam os riscos e há indicação, devendo ser realizada uma dose única com reforço a cada 10 anos.


No período puerperal, a vacina da FA é contraindicada para mulheres que estejam amamentando até os 6 meses de idade do recém-nascido, em vista do risco de ocorrência de meningoencefalite no recém-nascido. Caso seja indispensável ser vacinada durante o período de lactação, a mulher deve interromper o aleitamento pelos 15 dias que sucederam a vacinação. O ideal seria postergar a vacinação para nutrizes, desde que isso não implique em riscos.[4]


Considerações finais


Características epidemiológicas atuais exigem que a possibilidade de febre amarela seja considerada em gestantes com síndromes hemolítico-urêmicas como diagnósticos diferenciais em quadros graves de pré-eclâmpsia muitas vezes atípicas.


Considerando a letalidade de formas graves e a ocorrência epidêmica da FA, a vacinação em gestantes e puérperas pode ser considerada, ainda que o componente vacinal composto por vírus atenuado não seja recomendado em tais períodos. Em cada local, esta decisão deve ser ponderada em termos de riscos e benefícios.


Referências


  1. Mucci LF, Medeiros-Sousa AR, Ceretti-Júnior W et al. Haemagogus leucocelaenusand other mosquitoes potentially associated with sylvatic yellow fever in Cantareira state park in the São Paulo metropolitan area, Brazil. Journal of the American Mosquito Control Association. 2016;32(4):329-32.
  1. Vasconcelos PFC. Febre Amarela. Rev Soc Bras Med Trop. 2003;36(2):275-93.
  2. Ito RKL. Febre Amarela. In: Sass N, Oliveira LG. Obstetrícia. 1 ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2013;540-2.
  1. Pinto MIM. Imunização no ciclo gravídico-puerperal. In: Sass N, Oliveira LG. Obstetrícia. 1 ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2013;104-8.

 


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