Fragilidade do sistema nacional de abastecimento de água

Fragilidade do sistema nacional de abastecimento de água

A crise no abastecimento da água distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) é apenas reflexo do descuido com nossas reservas hídricas e com o saneamento básico.


A água é o principal recurso para a existência de vida no planeta. Apesar de sua importância, a falta de gestão adequada faz dela a maior causa de morte em países com baixa renda, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).


No Brasil, observamos o mesmo padrão. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a água vem sendo apontada como causadora da maioria dos surtos de doenças transmitidas por alimentos, considerando apenas aqueles cuja causa foi elucidada.


Em 2017, cerca de R$ 100 milhões foram gastos no tratamento de doenças de veiculação hídrica, com aproximadamente 2.340 óbitos. De acordo com a OMS, implantar a coleta de esgoto para 100% da população brasileira resultaria em redução de 74,6 mil internações. Fica fácil compreender o motivo de tantos transtornos associados ao consumo da água, uma vez que a falta de investimento em saneamento e fiscalização tem tornado rios, lagos, lagoas e oceanos destino comum do esgoto bruto doméstico e industrial.


No Rio de Janeiro, faz cerca de 40 anos que não há investimentos adequados em saneamento para as necessidades da população. O mesmo acontece com o sistema de captação, tratamento e distribuição de água, que não recebe recursos e cuidados compatíveis com o crescimento da população.


Por se tratar de uma tragédia anunciada, a recente falha no tratamento da água não deveria ter sido surpresa e poderia ter apresentado consequências mais graves. Apesar da presença indesejável de geosmina (metabólito produzido por bactérias, cianobactérias, fungos, protozoários e certas plantas) e da reclamação dos consumidores em relação a odor e sabor (flavor) de terra, alteração da cor e turvação da água, não ocorreram relatos de eventos de gastroenterite expressivos associados diretamente a seu consumo.


Embora redes sociais e alguns noticiários tenham reportado queixas de consumidores, análises da água feitas pela Vigilância Sanitária Municipal e outros órgãos não detectaram contaminação microbiológica significativa, apenas turvação em alguns pontos, o que coincide com os relatos da CEDAE.


Parece também que não houve aumento do número de casos de doenças de veiculação hídrica nos serviços de saúde.


Ainda assim, devemos considerar que alguns estudos afirmam que o consumo de água com gosto desagradável pode causar sintomas psicossomáticos em grupos vulneráveis, inclusive dores de cabeça, náuseas e estresse.


A falha ocorrida na distribuição de água decorreu do aumento da população de algas e bactérias, relacionado diretamente com a elevação da temperatura e da luminosidade, fatores comuns no verão brasileiro.


Outros facilitadores são o aporte de esgoto nos rios e as fortes chuvas de verão que arrastam grande quantidade de lixo e outros materiais para os leitos, aumentando a disponibilidade de matéria orgânica para o consumo de algas e bactérias.


Além disso, a poluição abundante dos rios não ocorre apenas no verão. Na época da estiagem (inverno no Rio de Janeiro), a vazão dos rios diminui, porém o aporte de esgoto continua o mesmo, elevando a concentração de poluentes na água.


Importante lembrar que o rio Paraíba do Sul corta significativos polos industriais e de produção agropecuária dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e recebe (nem sempre clandestinamente) rejeitos, antes de emprestar suas águas ao rio Guandu (que abastece alguns municípios do Rio de Janeiro).


Este esgoto pode conter compostos indesejáveis ou tóxicos (como agrotóxicos, hormônios e resíduos químicos industriais) de difícil ou impossível remoção durante o tratamento da água. Ressalto que o sistema não foi implantado para tratar uma água tão poluída quanto a de hoje.


Podemos incluir a variável do esgoto gerado por residências, que agora tem diversos compostos químicos, produtos de limpeza e medicamentos. Também não foi investigado o quanto essas substâncias podem ser removidas por sistemas de tratamento de água e esgoto. Devem ser realizados, portanto, estudos para detectar compostos tóxicos ou que apresentam ação no metabolismo humano antes e depois do tratamento de rios, bem como os efeitos destes, mesmo em baixas concentrações, na saúde humana e de animais de estimação.


Da mesma forma, deve-se iniciar imediatamente um programa de saneamento, que impeça o aporte de esgoto e resíduos industriais/agropecuários nos rios utilizados como fonte de água para a população, ao mesmo tempo em que órgãos públicos ambientais intensificam a vigilância quanto ao lançamento clandestino de rejeitos.


Também deve ser considerado o cuidado com os reservatórios públicos de água. Hoje, muitos estão abandonados e não recebem a proteção necessária. Instalações deterioradas e sem o devido controle de acesso por pessoas e animais revelam a fragilidade e o risco de contaminação acidental ou mesmo por vandalismo.


Com todas essas possibilidades de contaminação, a geosmina, a grande vilã do verão de 2020 no Rio de Janeiro, apenas evidencia o problema. Embora não tenha sido comprovada sua natureza tóxica contra humanos e animais, verificou-se efeito inibitório no brotamento de algumas verduras, como rúcula e radique. E, ainda que a geosmina não represente um risco direto, sua presença resulta de um crescimento descontrolado e abundante de microrganismos, o que evidencia falhas no manejo da água e consequente poluição dos mananciais.


Embora tenhamos necessidade de apontar culpados – a CEDAE por falha no manejo e na comunicação do problema, e o Poder Público, pela falta de investimento em saneamento –, a ocorrência de flavor terroso é um problema em reservatórios de água ao redor do mundo, inclusive em países com clima mais frio, e que investem seriamente nos sistemas de saneamento básico e tratamento de água, como Japão, Estados Unidos e países europeus.


Ainda que o evento atual tenha tido grande repercussão, este problema é pouco comum no Rio de Janeiro. A última ocorrência foi em 2004. No mesmo ano, também foi afetada a água de abastecimento do lago Guaíba, em Porto Alegre (RS).


Se correlacionarmos essas falhas com as muitas em outros serviços prestados à sociedade, como distribuição de energia, o histórico de flavor terroso é menos frequente que apagões na cidade, o que caracteriza perícia na captação e no tratamento de água pelas operadoras.


As cianobactérias são as principais produtoras da geosmina, substância até então inofensiva. Contudo, esses microrganismos são capazes de produzir uma série de outros compostos, inclusive cianotoxinas, que são neurotoxinas possíveis de serem carcinogênicas e hepatotóxicas. O contato, mesmo que recreacional, com elas pode resultar em gastroenterite, erupções cutâneas, sintomas semelhantes à asma, funcionamento anormal do fígado, fraqueza e tontura.


A causa da turbidez da água distribuída pela CEDAE ainda não foi determinada, mas independentemente do motivo, representa uma falha que a caracteriza como não potável. A geosmina não confere a aparência turva, mas a lise das células microbianas, presentes em altas concentrações, e a liberação de seu conteúdo intracelular pode ser um dos fatores. Há possibilidade de conter também substância adsorvida aos restos celulares. Essas duas situações são consideradas semelhantes à presença de toxinas, mesmo que microrganismos não tenham sido detectados microscopicamente nas análises. A CEDAE, contudo, relatou não ter detectado cianotoxina microcistina, conquanto as circunstâncias da análise não sejam claras.


O Brasil detém a maior parcela da água potável do mundo, mas parece não se dar conta da responsabilidade que é cuidar deste recurso. Segundo nosso entendimento sobre o ciclo da água, provavelmente ela não acabará, mas se tornará cada vez mais poluída. Importante ressaltar que temos condições tecnológicas para transformar qualquer tipo de água em potável, da salgada à poluída. Todavia, se hoje não conseguimos entregar, para toda a população, a água que é naturalmente pura, abundante e de baixo custo para tratar, será praticamente impossível fazer isso com uma que requer tratamento dispendioso. Nesse meio tempo, o sistema de abastecimento de água do Rio de Janeiro continua vivendo uma verdadeira “roleta russa”, torcendo para que nenhuma substância perigosa chegue acidental ou intencionalmente às águas do rio Guandu.


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