Idosos com demência e COVID-19

Idosos com demência e COVID-19

INTRODUÇÃO

 

As informações sobre a pandemia de COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, estão cada vez mais velozes em todos os aspectos. Nos últimos meses, a partir da observação, do desenvolvimento de estudos e da pesquisa genética, a comunidade científica vem aprimorando suas conclusões sobre o comportamento destes organismos acelulares e sobre a apresentação clínica dos pacientes. Desde os primeiros casos, foi clara a evidência de que idosos se apresentavam como grupo de risco com maior mortalidade. Para os mais frágeis, a exemplo daqueles com a doença de Alzheimer (DA), as características são ainda mais peculiares.

 

Coronaviridae é uma família de vírus que causam infecções respiratórias. Os primeiros em humanos foram isolados pela primeira vez em 1937, mas só receberam essa nomenclatura em 1965, em decorrência de seu aspecto à microscopia, semelhante a uma coroa. Entre os que nos infectam, os mais comuns são os alpha coronavírus 229E e NL63, e os beta coronavírus OC43 e HKU1. SARS-CoV e MERS-CoV são responsáveis por infecções respiratórias graves.¹

 

A infecção grave em idosos com demência já era uma preocupação usual nas unidades de terapia intensiva (UTIs), porém as manifestações severas da COVID-19, com acometimento pulmonar, vascular e renal, além de importante cascata inflamatória, respondem por números ainda mais altos de desfecho negativo e piora cognitiva. Cada caso deve ser avaliado individualmente, levando-se em conta as fases da doença, as comorbidades e as perspectivas pessoais e familiares.

 

 

APRESENTAÇÃO CLÍNICA DA COVID-19 EM IDOSOS COM DEMÊNCIA

 

A COVID-19 é classicamente conhecida pelos sintomas respiratórios: tosse seca, dor de garganta, coriza, febre, anosmia e disgeusia, podendo evoluir para síndrome respiratória aguda grave. No entanto, idosos não costumam apresentar os sintomas característicos das doenças.

 

O modelo tradicional de diagnósticos se aplica a menos da metade da população idosa.2 Isso se justifica pela ocorrência de múltiplas comorbidades, doenças psiquiátricas, perdas funcionais e interferências do ambiente social. Com frequência, pacientes geriátricos surpreendem familiares e profissionais de saúde com manifestações incomuns, e os sintomas se confundem com doenças de base. Particularmente em idosos com transtornos neurológicos que podem não perceber ou não saber expressar o que sentem ou, ainda, não apresentar tosse devido à diminuição dos reflexos.

 

A febre, um dos principais sintomas dessa doença viral, pode estar ausente em alguns indivíduos (77,8% dos idosos e 88,7% dos jovens); outros pacientes podem, inclusive, apresentar hipotermia.3

 

O delirium pode ocorrer em mais de 60% dos casos na população idosa geral, mas é ainda mais frequente em pacientes com demência. Sua forma hipoativa se caracteriza por prostração, inapetência e incontinência urinária e fecal, enquanto a forma hiperativa se apresenta com alucinações (habitualmente visuais), agressividade, agitação psicomotora e distúrbios do sono.

 

Pode haver sintomas gastrintestinais como diarreia, náuseas, vômitos e dor abdominal em um quarto dos casos.3,4 As quedas também são comuns, sendo a manifestação inicial em 25% dos casos.3 Por sua vez, as insuficiências cardíaca, renal aguda e hepática compõem as descompensações prevalentes.3,4

 

Tamanha complexidade pode levar a atraso ou erro no diagnóstico, por isso é fundamental conhecer essas peculiaridades. Talvez delirium, quedas e diarreia não sejam manifestações atípicas da COVID-19, e sim sinais de gravidade.3

Reconhecer rapidamente essas manifestações agiliza o atendimento, reduz o risco de complicações e evita a transmissão da doença para familiares, cuidadores e profissionais.

 

 

DOENÇA DE ALZHEIMER, COMORBIDADES E URGÊNCIA

 

A DA é um distúrbio neurodegenerativo que se manifesta por deterioração cognitiva da memória de modo progressivo e irreversível. Tem incidência e prevalência aumentadas em idosos, principalmente acima de 80 anos.

 

Segundo dados do Ministério da Saúde, as doenças com maior incidência no país são as crônicas não transmissíveis, especialmente acidente vascular cerebral, infarto, hipertensão arterial, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas.5 No Brasil, elas correspondem a cerca de 70% das causas de morte e têm grande prevalência em pacientes com Alzheimer.

 

O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) nos EUA atualizou e expandiu a lista de quem corre maior risco de apresentar um quadro grave de COVID-19.6 Adultos mais velhos têm risco aumentado de doença grave, demências, doença renal crônica, DPOC, transplantados, como insuficiência cardíaca, doença arterial coronariana ou cardiomiopatias, anemia falciforme e diabetes.

 

 

IDOSOS COM DEMÊNCIA NA UTI

 

Os idosos são o segmento que mais cresce nas UTIs, compondo 42 a 52% das admissões. As indicações de tratamento para esses pacientes são essencialmente as mesmas dos adultos jovens, porém o prognóstico depende de fatores como: idade avançada (> 75 anos), gravidade da doença de base, comorbidades, grau de déficit cognitivo e estado funcional.8

 

A Resolução CFM nº 2.156/2016 estabelece os critérios de admissão em UTI, entre eles: pacientes que necessitem de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; e pacientes que necessitem de monitoramento intensivo e não tenham nenhuma limitação de suporte terapêutico.9

 

Na pandemia de COVID-19, protocolos de UTI foram adaptados às características da doença, estabelecendo critérios e orientando condutas a partir da avaliação clínica. Pacientes idosos e, em especial, com sinais clínicos de maior risco são elegíveis para leitos sob vigilância continuada, com confirmação diagnóstica e realização de exames de rotina e outros necessários para estratificar a gravidade.

 

A vigilância é importante, pois idosos podem rapidamente evoluir para um quadro crítico, sem resposta às medidas iniciais para controle respiratório e com sepse ou choque séptico, iminência de intubação orotraqueal, necessidade de ventilação mecânica, insuficiência renal grave, instabilidade hemodinâmica e alteração do nível de consciência.

 

Os critérios fundamentais para admitir pacientes críticos em UTI são:

  • SatO2 < 90% ou PaO2 < 60 mmHg em ar ambiente
  • Necessidade de O2 > 3 L/min para manter SatO2 > 93%
  • Esforço ventilatório, cianose
  • Relação PaO2/FiO2 < 300
  • Rebaixamento do nível de consciência
  • FR > 30 ipm
  • Hipotensão arterial (choque)
  • Disfunção orgânica grave
  • Suspeita de insuficiência renal
  • Risco elevado de eventos trombóticos (D-dímero > 3.000).10

 

O escore mais usado atualmente nas UTIs gerais é o SOFA (do inglês, sequential organ failure assessment), que avalia as funções respiratória, hematológica, hepática, cardiovascular e neurológica (ver quadro a seguir). Um importante diferencial desse escore é o acompanhamento diário de cada uma dessas funções, o que determina o diagnóstico, o tratamento e o custo hospitalar.11

 

Escore SOFA

 

0

1

2

3

4

PaO2/FiO2

≥ 400

< 400

< 300

< 200 com suporte ventilatório

< 100 com suporte ventilatório

Plaquetas (103)

≥ 150

< 150

< 100

< 50

< 20

Bilirrubina

< 1,2

1,2 a 1,9

2 a 5,9

6 a 11,9

≥ 12

Sistema cardiovascular

Pressão arterial média (PAM) ≥ 70

PAM < 70

Dopamina < 5 ou dobutamina (qualquer dose)

Dopamina de 5,1 a 15 ou epinefrina ≤ 0,1 ou norepinefrina ≤ 0,1

Dopamina > 15 ou epinefrina > 0,1 ou norepinefrina > 0,1

Escala de coma de Glasgow

15

13 a 14

10 a 12

6 a 9

< 6

Creatinina ou débito urinário (DU) (mL/dia)

< 1,2

1,2 a 1,9

2 a 3,4

3,5 a 4,9 ou DU < 500

> 5 ou DU < 200

 

 

Também tem sido usado o sistema prognóstico SAPS 3 (do inglês, simplified acute physiology score 3), composto de 20 variáveis, representadas por escore fisiológico agudo e avaliação do estado prévio, visando estabelecer índice preditivo de mortalidade para pacientes admitidos em UTI.12

 

O tratamento da doença segue os protocolos vigentes, com mudanças a partir de novos estudos, incluindo a abordagem das complicações e doenças associadas.

 

Segundo a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), no documento de 26 de março de 2020, que define os critérios de internação de idosos em UTI, a idade cronológica não pode ser fator decisório isolado. Devem também ser consideradas a história clínica e social, a funcionalidade e as diretrizes antecipadas de vida do paciente. Nos casos de doença incurável e terminal, devem ser oferecidas medidas de cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, respeitando a vontade do paciente ou de seu representante legal. A comunicação entre a equipe de cuidados intensivos, o idoso e a família é essencial na formulação do plano de cuidados, atendendo aos desejos do paciente.13

 

 

NOVAS PESQUISAS - O QUE DIZER DAS DROGAS?

 

 

A urgência advinda da pandemia reforça angústias naturais do ser humano, com pressões sociais e políticas que muitas vezes forçam escolhas em ambiente de pouca ciência. Justamente por isso, deve-se agir com particular cautela com a população idosa, que já apresenta alta letalidade pelo COVID-19, seja pela doença demencial de base, pelas comorbidades e/ou pelo delirium da hipóxia causada pelo vírus. Essa situação tende a ampliar o uso de fármacos e suas interações, incluindo corticosteroides, antivirais, antitrombóticos, imunomoduladores, etc.

 

Enquanto memantina, tocilizumabe, ribavirina e favipiravir apresentam baixo risco na relação farmacocinética/farmacodinâmica, inibidores seletivos da recaptação de serotonina contribuem com o efeito hipoglicêmico da cloroquina (CQ) e da hidroxicloroquina (HCQ), e sua associação com azitromicina e antipsicóticos tende a prolongar o intervalo QT e causar arritmias cardíacas.

 

Ao inibir ou induzir as enzimas do citocromo P450, os efeitos da galantamina e da donepezila podem aumentar durante o uso de CQ e HCQ, e retrovirais como lopinavir e ritonavir são capazes de elevar suas concentrações plasmáticas, provocando reações adversas ou toxicidade.14 Doses altas de vitamina D elevam o risco de eventos cardiovasculares, quedas e fraturas em idosos, além de predispor o paciente a alguns tipos de câncer e, inclusive, aumentar a mortalidade geral.15

 

Especificamente no tratamento da doença de Alzheimer, os agentes aprovados são os anticolinesterásicos e antagonistas de receptores NMDA (p. ex., memantina). Terapias modificadoras da doença, como as de ação na cascata amiloide (incluindo anticorpos monoclonais e vacinas), imunização pela via tau, alternativas moleculares (p. ex., tirosinoquinase) e com foco neuroinflamatório, entre outras (como estratégias combinadas), ainda são um desafio.16-18 Apesar das dificuldades, talvez possamos aprender com este exigente momento a ter mais cuidado e rigor científico/acadêmico com os novos e promissores tratamentos. Frequentemente anunciadas na mídia ou “viralizadas” pelas redes sociais, e muito longe de serem um estudo de caso (já fraco em nível de evidência), essas promessas terapêuticas mobilizam pacientes e familiares na busca da cura milagrosa. É preciso muita calma em meio a uma pandemia desconhecida, aguda e trágica, e mais ainda em nosso dia a dia, para definir as melhores escolhas terapêuticas nesta doença crônica e neurodegenerativa.

 

 

CONCLUSÃO

 

O tratamento de idosos com doença de Alzheimer, acometidos pela COVID-19, tem sido um desafio para a equipe profissional e a família. Em decorrência da pandemia e de motivos sanitários, estabeleceram-se novas orientações específicas para lidar com idosos com demência em domicílio e em setores hospitalares, incluindo as UTIs. Cada caso deve ser individualizado, buscando estabelecer o melhor plano terapêutico de acordo com a fase da doença.

 

O cuidado ao idoso em idade avançada, com fragilidade orgânica e em situação de risco, sempre necessita de reflexão, rapidez de conduta, união da família, e a interação com a equipe de saúde, para que se tome a melhor decisão técnica, humana e coerente nesse momento da vida.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

  1. Santos VS. Coronavírus: a família de vírus que causou a pandemia de COVID-19. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/doencas/coronavirus.htm.

 

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  1. Godaert L, Proye E, Demoustier-Tampere D et al. Clinical characteristics of older patients: the experience of a geriatric short-stay unit dedicated to patients with COVID-19 in France. J Infect. 2020; 81:e93-4.

 

  1. Liu K, Chen Y, Lin R et al. Clinical features of COVID-19 in elderly patients: a comparison with young and middle-aged patients. J Infect. 2020; 80:e14-8.

 

  1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.

 

  1. National Center for Immunization and Respiratory Diseases (NCIRD), Division of Viral Diseases. People who need to take extra precautions. Disponível em: www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/need-extra-precautions/index.html. Acesso em: 28/06/2020.

 

  1. The Novel Coronavirus Pneumonia Emergency Response Epidemiology Team. Vital surveillances: the epidemiological characteristics of an outbreak of 2019 novel coronavirus diseases (COVID-19) – China, 2020. China CDC Weekly. 2020; 2(8):113-22. Disponível em: http://weekly.chinacdc.cn/en/article/id/e53946e2-c6c4-41e9-9a9b-fea8db1a8f51. Acesso em: 28/06/2020.

 

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  1. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.156/2006. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Brasília: Diário Oficial da União; 2016.

 

  1. Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para diagnóstico de tratamento da COVID-19. Versão de 06/04/2020.

 

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  1. Ledoux D, Canivet JL, Preiser JC et al. SAPS 3 admission score: an external validation in a general intensive care population. Intensive Care Med. 2008; 34:1873-7.

 

  1. Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Critérios de Internação em Unidade de Terapia Intensiva para Idosos. Disponível em: https://sbgg.org.br/criterios-de-internacao-em-unidade-de-terapia-intensiva-para-idosos. Acesso em: 26/3/2020.

 

  1. Balli N, Kara E, Demirkan K. The another side of COVID-19 in Alzheimer’s disease patients: drug-drug interactions. Int J Clin Pract. 2020; e13596.

 

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  1. Grossberg GT, Tong G, Burke AD et al. Present algorithms and future treatments for Alzheimer’s disease. J Alzheimer’s Dis. 2019; 67:1157-71.

 

  1. Ibrahim NH, Yahaya MF, Mohamed W et al. Pharmacotherapy of Alzheimer’s disease: seeking clarity in a time of uncertainty. Front Pharmacol. 2020; 11:261.

 

 

Artigo escrito também pelos seguintes especialistas:

 

 

Dra. Celene Pinheiro

Médica Geriatra Titulada pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Diretora de Divulgação da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), Regional São Paulo.

 

 

 

Dr. Eduardo Hostyn Sabbi

Médico Psiquiatra Especialista em Atendimento de Idosos. Mestre em Ciências da Saúde. Proprietário da Vitalis Morada Sênior. Presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), Regional Rio Grande do Sul.

 

 

 

Dr. Jean Pierre de Alencar

Médico Especialista em Geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), Regional São Paulo.

 

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