O cuidado: deuses, mitos e a nossa humanidade

O cuidado: deuses, mitos e a nossa humanidade

A intervenção do Curador Ferido se expressa na presença solidária, na mão estendida, no olhar desvelado, no ouvido perscrutador, no toque reconfortante, na verdade, na palavra amiga, no silêncio profundamente eloquente.


JF Oliveira


Por Dra. Ligia Py – Os deuses gregos nos inspiram. São imortais, já nascem prontos, com a identidade definida, e assim permanecem para todo o sempre em sua imortalidade. Mortais somos nós, que nascemos prematuros, crescemos e envelhecemos construindo a nossa identidade enquanto vivemos na incerteza, entre esperanças, realizações e frustrações, até o momento da morte.


Pensemos em Eros e Tanatos, por exemplo, que nos apontam os aspectos polares ‒ vida e morte, respectivamente ‒ e cujas histórias nos fazem buscar o sentido da vida. Vivemos na margem oposta aos deuses. Somos mortais com a surpreendente capacidade de imortalizar-nos. E assim o fazemos por meio das marcas que deixamos nos caminhos percorridos da nossa existência, cumprindo, afinal, um sentido. É esse o legado com o qual premiamos os que permanecerão vivos após a nossa morte.


Como seres biográficos, cada um de nós escreve a sua história pessoal de procura incessante por uma significação para o que fazemos, o que é feito de nós e o que fazemos aos outros. Como resultado, as histórias pessoal e da coletividade humana se integram, com coerências e incoerências e acertos e desacertos que marcam a procura e o encontro do sentido daquilo em que vamos incessantemente nos tornando. Somos sempre eu e o outro. Então, cuidar de si mesmo e do outro é preciso!


Cuidar é primariamente acompanhar, fazer uma caminhada junto àquele que demanda o cuidado. No mito do Curador Ferido evidencia-se o processo interior pelo qual atravessam todos os que se dedicam a ajudar quem passa por um momento difícil na vida, padece de um sofrimento físico, psíquico ou espiritual. A relação que se firma entre aquele que cuida e aquele que é cuidado desencadeia um processo de reconhecimento, aceitação e integração das próprias feridas do cuidador.


Na narrativa mitológica, Esculápio, filho de Apolo e de Corônis, é educado na arte da medicina pelo centauro Quíron, que sofre de uma chaga incurável infligida por Hércules como castigo. Curiosamente, o curador necessitado de cura é quem ensina a Esculápio a arte de curar, a desenvolver em si mesmo a capacidade de sentir-se à vontade na obscuridade do sofrimento, a realizar a arte de se sentir “em casa” na dor, descobrindo internamente as sementes da luz e da cura do outro.


Quíron é o Curador Ferido. Na sua dualidade mítica, a metade superior do corpo representa o curador sábio; e a metade inferior, o animal ferido. Em uma noite de céu estrelado, sua imagem aparece na constelação de Sagitário. Condenado à dor eterna, ele parte do seu sofrimento para perscrutar a natureza da dor. E isso torna Quíron sábio, fazendo-o reconciliar com seu próprio sofrimento, suas próprias feridas e mitigar a dor do outro a partir da sua própria experiência de dor.


O mito do Curador Ferido é lido por nós como o “Cuidador” Ferido. Inspirados por ele, cuidadores e terapeutas do corpo e da alma são chamados não somente a ativar a dimensão de tratamento e cuidado no exercício de sua atividade, mas também a tomar consciência de suas próprias feridas, envolvendo-se na relação cuidador-cuidado. Médicos, enfermeiros, profissionais da saúde, cuidadores formais e familiares, enfim, todos nós, reconciliados com o próprio sofrimento, com as próprias feridas, somos “Cuidadores” Feridos. Assim, nos tornamos mais capacitados para acompanhar os que sofrem e demandam nossos cuidados.


A partir da experiência pessoal de sofrimento, nos tornamos mais capazes de ser compreensíveis e compassivos e mais próximos de quem sofre, numa relação que se legitima pela autenticidade de um vínculo de confiança e força. Podemos nos aproximar das feridas alheias com liberdade, sem nos sentirmos ameaçados. Podemos superar a tentação de exercer domínio sobre as pessoas fragilizadas de quem cuidamos.


É sempre bom lembrar que nós, “Cuidadores” Feridos, jamais deixamos de ser vulneráveis, como o são aqueles de quem cuidamos. Essa consciência de abraçar a própria vulnerabilidade não pode ser eliminada, porque é essencialmente nossa, é constitutiva da condição humana.


Em tempos de longevidade tão ampliada, lembremos, particularmente, das pessoas idosas. A extensão da vida humana prescreve a ascensão da solidariedade, na união de esforços individuais e coletivos para o enfrentamento dos problemas que advêm com esse novo perfil etário das sociedades contemporâneas. Perplexidade diante do envelhecimento e incertezas frente ao futuro apontam para as carências dos mais velhos, com suas vulnerabilidades e fragilidades: insegurança e necessidade do outro, ambas sentidas pelos primeiros seres humanos que experimentaram o desamparo nas dificuldades extremas da sua sobrevivência no início da vida na Terra.


Indivíduos mais idosos, cuja saúde é mais vulnerável e, portanto, têm sua independência funcional afetada, muitas vezes em virtude de doenças que deflagram a perda da sua autonomia, demandam cuidado e proteção, assim como demandamos logo após o nosso nascimento.


Sofrer com aquele que sofre é a essência mesma do cuidado, do acompanhamento, do estar-junto. O “Cuidador” Ferido vê, experimenta, sente que a mais aguda dor não é a dor do corpo ‒ a que realmente dói ‒, mas uma “dor total”, como denominou Cicely Saunders, é a dor que habita o idoso em todos os momentos: em casa, na rua, no hospital, em meio à desesperança e à confusão. É a dor mental, a dor social, a dor espiritual, a dor que pesa sobre as mãos cansadas e os olhos fundos do “Cuidador” Ferido, que se vê tantas vezes no limite da sua força.


Diante da pessoa idosa incapacitada, doente e sofrida, um sentimento de impotência perpassa pelo “Cuidador” Ferido. Suas providências nem sempre obtêm resposta. Começam a se frustrar as rotinas, antes eficientes. E essa ausência de resposta gera um vazio na existência do “Cuidador”, um esvaziamento de élan, uma paralisia de prospectiva.


É quando se dá a possibilidade do salto do vazio de sentido para a inauguração da infinita via da solidariedade. Ressignificando a sua própria dor, o “Cuidador” Ferido dá uma nova destinação a sua entrega ao outro: voa da singularidade do cuidado daquele ser idoso único para a universalidade das dores de toda a humanidade.


Em um mundo que celebra o culto às individualidades, que se divide entre capacitados e incapacitados, poderosos e oprimidos, ricos e pobres, brancos e negros, sãos e doentes, jovens e velhos, o “Cuidador” Ferido se distende na sua dor, expandindo-se como na canção de Maurício Tapajós e Paulo Cesar Pinheiro: “Quando um muro separa, uma ponte une…”.


Bibliografia


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