O Delírio de Ciúmes de Bentinho em Dom Casmurro

O Delírio de Ciúmes de Bentinho em Dom Casmurro

Machado de Assis


Joaquim Maria Machado de Assis, que recebeu de Carlos Drummond de Andrade a alcunha de “bruxo do Cosme Velho”, é considerado um dos maiores nomes, senão o maior, da literatura brasileira. Jornalista, romancista, contista, poeta, teatrólogo e cronista, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL) e o seu primeiro presidente. É autor de Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, O Alienista e Dom Casmurro, entre outras obras.


Machado de Assis alcançou a fama e o reconhecimento em vida, apesar de ter tido desvantagens que, para quase qualquer pessoa, seriam instransponíveis. Em primeiro lugar, Machado de Assis, neto por parte de pai de um escravo alforriado, era mulato. Se não ser branco hoje no Brasil não é fácil, imagine em 1839, ano do nascimento do escritor, quase 50 anos antes de a Lei Áurea ser assinada pela Princesa Isabel. Pobre, tímido, gago e epiléptico, Machado nunca teve educação formal e praticamente jamais saiu do estado do Rio de Janeiro. Assim, não soa exagerado quando o estudioso Luiz Antonio Aguiar afirma que “cada vez que você pegar um livro de Machado de Assis, deve se lembrar que tem nas mãos um milagre, algo que contrariou a adversidade, a lógica, a compreensão, as possibilidades”.


Dom Casmurro


O romance Dom Casmurro foi publicado em 1899, quando Machado de Assis tinha sessenta anos. A obra conta a história de Bento Santiago, ou Bentinho, um advogado de 55 anos, que vive isolado em uma casa no Engenho Novo, bairro carioca, onde escreve suas memórias. Narrado em primeira pessoa, Bentinho evoca inicialmente sua adolescência, quando, na rua Matacavalos (atual Riachuelo, na Lapa), era vizinho de Capitu. Os dois começam a namorar, mas a mãe do protagonista quer que ele se torne padre. Ela, que sofrera um aborto espontâneo na primeira gestação, havia feito uma promessa: se tivesse um filho, ele se tornaria sacerdote da Igreja. Assim, embora apaixonado por Capitu, Bentinho é obrigado a entrar para o seminário, onde conhece Escobar, que viria a ser seu grande amigo. Seguindo estratagemas criados por Capitu, Bentinho consegue convencer sua mãe a tirá-lo do seminário. Os dois jovens se casam e têm um filho, Ezequiel. Escobar, que também escapa da vida religiosa e se casa com uma amiga de Capitu chamada Sancha, é escolhido para ser o padrinho de Ezequiel. Mais tarde, Escobar morre afogado em uma ressaca na praia do Flamengo. Bentinho então passa a acreditar que Capitu o traiu com Escobar e que Ezequiel é, na verdade, filho do amigo. Capitu, junto com o menino, é exilada pelo marido na Europa, onde acaba morrendo. No final da história, anos depois, Ezequiel retorna para uma breve visita a Bentinho, que continua a renegá-lo e o trata com frieza.


O personagem-narrador apresenta ao leitor o que considera provas do adultério. Por exemplo, certa vez, Bentinho vai sozinho ao teatro, pois Capitu diz estar doente. Ele vai embora ao fim do primeiro ato e surpreende Escobar saindo de sua casa, onde o estaria aguardando. Em outra ocasião, no enterro de Escobar, chama a atenção de Bentinho como Capitu olha para o cadáver: “[...] tão fixa, tão apaixonadamente, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas”. Por fim, e principalmente, Bentinho vê semelhanças físicas entre Ezequiel e Escobar. O menino, diferentemente dos pais, e à semelhança do amigo, tem olhos claros; e não apenas os olhos seriam parecidos, “mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira”.


Capitu era mesmo culpada?


Na época da publicação do livro, os resenhistas se referiram à obra como uma história de adultério, sem nenhum questionamento quanto à culpa de Capitu. Durante mais de sessenta anos, não houve dúvidas de que Capitu tinha traído Bentinho. No entanto, em 1960, mais de cinquenta anos após a morte de Machado de Assis, pela primeira vez alguém contestou a veracidade das acusações de Bentinho contra a esposa. Nesse ano, Helen Caldwell, crítica literária, tradutora norte-americana de Machado para o inglês e precursora do movimento feminista nos EUA, publica o livro The Brazilian Othello de Machado de Assis, no qual afirma que Capitu era, na verdade, inocente. O título da obra faz referência à tragédia de Shakespeare, Otelo, na qual o personagem-título, influenciado por Iago, passa a acreditar que Desdêmona o trai com Cassio. Otelo a mata e, depois, quando descobre que o relato de Iago era mentiroso, comete suicídio.


O próprio Bentinho relaciona seu drama pessoal com o de Otelo, quando, certa vez, vai ao teatro e assiste justamente a essa peça de Shakespeare. Além disso, não deve ser por acaso que o nome Iago está contido no sobrenome do personagem-narrador, Santiago, o que poderia significar que Bentinho foi “envenenado” não por outrem, como em Otelo, mas por si próprio.


Diversos outros elementos no texto machadiano poderiam ser usados em defesa de Capitu. Em primeiro lugar, a história é contada unicamente por Bentinho, e, assim, conhecemos apenas a sua versão dos fatos. Capitu, que alega inocência, só tem voz por intermédio do personagem-narrador. Além disso, a leitura cuidadosa do texto de Dom Casmurro evidencia um Bentinho parcial e manipulador: ele tem uma clara intenção de convencer o leitor – talvez a si próprio também – da culpa de Capitu. Nesse sentido, a personagem é sutilmente descrita desde adolescente como ardilosa. Seus olhos são “de cigana oblíqua e dissimulada”, ou são “olhos de ressaca”, por serem traiçoeiros, “uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca”. Em todo o livro, a palavra “ressaca” aparece quatorze vezes!


O consenso atual é que as “provas” apresentadas por Bentinho são meramente circunstanciais. É possível que tenha havido a traição, mas não há certeza. Em muitas faculdades de Direito, simulou-se o julgamento de Capitu, com alunos fazendo os papéis de promotor, advogado de defesa, juiz e jurados. Contudo, a dúvida é justamente o elemento mais interessante e peculiar do romance. A ambiguidade quanto à “culpa” de Capitu é prova inequívoca da genialidade de Machado, que até o final de sua vida se manteve em silêncio sobre essa questão, talvez secretamente rindo da ingenuidade de seus primeiros leitores. Bruxaria mesmo!


Um delírio de ciúmes


Segundo José Leme Lopes (1904-1990), ex-professor catedrático da cadeira de psiquiatria na antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bentinho sofria da chamada “síndrome de Otelo” e apresentava um delírio de ciúmes. Em 1974, Leme Lopes publica o livro A psiquiatria de Machado de Assis, no qual analisa diversos personagens machadianos à luz das doenças mentais. Na obra, um capítulo inteiro é dedicado a Dom Casmurro.


Mas o que é um delírio? De acordo com a definição de Karl Jaspers, o “pai” da psicopatologia fenomenológica, delírios – ou ideias delirantes – são juízos patologicamente falsos que têm as seguintes características externas: convicção extraordinária, impossibilidade de ser influenciado e impossibilidade de conteúdo. Essa definição, contudo, é considerada muito restritiva, visto que muitas ideias classificadas na prática psiquiátrica como delirantes não se adequam perfeitamente a ela. Nesse sentido, alguns delírios não são falsos, têm um conteúdo possível, são até certo ponto influenciáveis ou estão associados a uma convicção não tão intensa.


Por que a crença de Bentinho de que foi traído por Capitu é delirante? Porque ela independe da realidade. A partir de indícios meramente circunstanciais, ele, desproporcionalmente, formou uma “convicção extraordinária”, não influenciável pela argumentação lógica ou pela exposição aos fatos. Mesmo que tenha havido o adultério, nada mudaria, a ideia continuaria a ser delirante – neste caso, um delírio de conteúdo verdadeiro, que, apenas por casualidade, coincidiria com a realidade. O que determina se uma crença deve ser classificada ou não como delirante não é a conclusão a que o indivíduo chegou, mas como ele chegou a ela, ou seja, se o seu raciocínio seguiu os princípios da lógica formal e se foi mantida a capacidade para a autorrefutação e a autocrítica.


Bentinho preenche os critérios para o diagnóstico de um transtorno delirante, a antiga paranoia. Seu delírio tem as características típicas desse quadro: não bizarro, de conteúdo possível, bem sistematizado, interpretativo, autorreferente e monotemático. Além disso, como também se costuma observar no transtorno delirante, alucinações e sintomas negativos da esquizofrenia estão ausentes.


Bentinho no divã


Ao analisar a personalidade pré-mórbida de Bentinho, vemos que ele, adolescente, já se mostra ciumento e possessivo. Fica evidente que ele, com quinze anos, é mais imaturo que Capitu, com quatorze. Ele é submisso e medroso, e é ela quem comanda a ação. O próprio personagem-narrador reconhece: “Capitu era Capitu, isto é, criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem”. E, certa vez, ela diz para ele: “Você há de ser sempre uma criança”.


Segundo Leme Lopes, o delírio de Bentinho teria origem em conflitos relativos a uma homossexualidade latente. Freud, na discussão do famoso “caso Schreber”, publicado doze anos após Dom Casmurro, afirma que o delírio é uma defesa contra impulsos homossexuais. Para o “pai da psicanálise”, o delírio de ciúmes seria assim explicado: o pensamento “eu (um homem) o amo” se transforma, por um mecanismo de negação, em “não o amo” e, em seguida, por projeção, em “ela o ama”. Leme Lopes, assim como outros autores, encontram no texto de Dom Casmurro diversos indícios de uma paixão, provavelmente inconsciente, de Bentinho por Escobar. “A minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me”, lamuria-se o personagem-narrador, atribuindo a Capitu uma importância meramente cronológica e colocando Escobar como mais grandioso. Enquanto os olhos de Capitu eram de “ressaca”, os de Escobar eram “dulcíssimos”. Bentinho tem um retrato do amigo em casa, para o qual olha de vez em quando. As demonstrações de afeto entre os amigos são bastante intensas: “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo [Escobar], que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou”. E ainda: “[Capitu] viu as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que merecia tanto. — É o Escobar...”. Certa vez, Bentinho se despede de Escobar assim: “[...] com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse ‘adeus’, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou”. Em outro momento, Escobar se gaba de suas qualidades de nadador e pede para Bentinho apalpar seus braços. “Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade”.


Por outro lado, Bentinho também se sente atraído pela esposa de Escobar, Sancha, e flerta com ela: “Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros...”. Tais impulsos, da mesma forma que os homossexuais, seriam passíveis de repressão e de outros mecanismos de defesa de natureza psicanalítica, igualmente resultando na formação de um delírio.


Conclusão


Embora se trate de um personagem fictício, o “caso clínico” de Bentinho é bastante útil para o ensino da psicopatologia, particularmente em relação ao delírio. Além disso, a discussão se presta como mais uma homenagem a Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, e a José Leme Lopes, um dos nossos maiores psiquiatras.


Referências bibliográficas

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