O ritual da consulta médica

O ritual da consulta médica

Os rituais, inerentes a todas as sociedades humanas, assumem diversas formas e desempenham importantes funções. A consulta médica é um momento ritualístico, por excelência, e não pode deixar de ser considerado como tal.


Os rituais coletivos são de fácil reconhecimento. Os mais comuns são os religiosos, os esportivos, os musicais, os turísticos e os políticos. Em todos eles, os componentes simbólicos são sempre explorados ao máximo, porque, embora não façam parte do conteúdo do que está sendo ritualizado – solenidade religiosa, comício político, show artístico, disputa esportiva –, eles reforçam o objeto central – a oração, a música, o jogo, a doutrinação. Daí a grande importância do componente simbólico dos rituais. As mesmas orações em voz baixa em uma capela silenciosa repercutem de modo diferente nos participantes do que as realizadas em uma catedral repleta de luzes, música, vestes coloridas e cânticos.


Os elementos simbólicos observados nos rituais são os mais variados – roupas, gestos, palavras, sons, músicas, aromas, luzes.


Os rituais de cura acompanham a humanidade desde os primórdios da medicina, em seu amplo sentido. Tanto podiam ser coletivos como individuais. Os mais antigos, parte essencial das atividades dos xamãs e pajés, quase sempre eram públicos e coletivos. Estes rituais foram herdados pelos pais e mães-de-santo e pelos pastores de algumas denominações evangélicas, que os usam com grande eficiência para a “cura” dos males do corpo e do espírito. Aliás, não há por que duvidar da veracidade das “curas” que ocorrem durante estes rituais que associam religião e práticas curativas. O efeito psicológico dos rituais é mais forte do que o efeito placebo das pílulas, intervenções e cirurgias. A explicação está no poder simbólico que acompanha os passes, os toques, as orações, as beberagens. O fato de serem coletivos confere a estes rituais uma estranha e contagiante força.


A medicina e os médicos têm seus rituais. A consulta é um deles. Aliás, naquele momento é que se realiza o ato médico básico, o qual não pode ser banalizado.


O jaleco branco ou em cores claras, usado por um médico em seu consultório ou hospital, pode ser considerado como um símbolo ritualístico. Além de seu aspecto utilitário – manter a higiene, evitar sujeiras e contaminação, para o que, diga-se de passagem, tem pouca eficiência – pode ser considerado como um símbolo da figura do médico.


Associam-se ao jaleco branco, como símbolo ritual, a profissão médica, repositório de conhecimento especializado e inacessível, poder para coletar uma história médica e obter detalhes íntimos das pessoas, desnudar o corpo e a vida dos pacientes, prescrever medicamentos ou outros tratamentos, internar em hospitais as pessoas doentes, muitas vezes, contra a vontade delas, controlar os subordinados na hierarquia profissional, aliviar o sofrimento, confiabilidade e eficiência, respeitabilidade e status social elevado, renda elevada, familiaridade com a doença e o sofrimento, tomar decisões de vida ou morte. Tudo isso faz parte do componente ritualístico da atividade de um médico.


Outros símbolos subsidiários que foram sendo incorporados são o estetoscópio e o crachá com fotografia com o nome precedido da palavra mágica, reduzida a duas letras: “Dr.”.


A potencialidade desses símbolos é evidenciada na publicidade de medicamentos veiculados na televisão, na internet ou em jornais, quando aparece uma pessoa de jaleco branco, cujo objetivo é simbolizar ciência e confiabilidade.


Tais símbolos são perfeitamente comparáveis aos talismãs, galhos de plantas, penas de aves, estatuetas que simbolizam as poderosas forças de cura de pajés e xamãs, ou a água-benta dos padres e pastores. Assim também são os ternos bem cortados e os exemplares de textos bíblicos ricamente encadernados nas mãos dos pastores, nos templos ou na televisão.


Uma pesquisa realizada na Inglaterra revelou que 64% dos pacientes admitiram que a maneira como os médicos se vestiam, em particular roupas brancas ou jaleco, inspirava confiança na habilidade profissional desses indivíduos. Esses mesmos pacientes preferiam que seus médicos não se vestissem de modo informal.


Além da consulta, diversos rituais estão ligados a outros momentos do processo saúde-doença e ao adoecer-curar. O que acompanha a hospitalização de um paciente é muito típico. O afastamento do paciente de sua vida cotidiana é reforçado, privando-o de suas roupas, que são substituídas por um uniforme (pijama ou camisola) com cores padronizadas, quase sempre de tamanho inadequado para ele ou para ela, geralmente muito curto e apertado ou muito grande e folgado. Em nome de que e para que isto é feito? Da higiene e para facilitar o “manuseio” do paciente. Mas, independentemente dos aspectos práticos, é inegável seu significado simbólico. Vestido daquela maneira torna-se mais evidente sua condição de paciente, cujo papel ele deve representar corretamente.


Pode-se concluir, então, que o diagnóstico e o tratamento ocorrem em tempo e espaço ritualizados. Nesses ambientes, até mesmo os tratamentos mais técnicos são influenciados pela atmosfera ritualística que foi incluída por Balint, no “efeito droga” do próprio médico.


Os mecanismos responsáveis pelo efeito dos rituais podem ser classificados em três grupos que se superpõem: psicológicos, sociais e protetores.


Durante a consulta, principalmente na primeira, o paciente se encontra perdido e assustado, procurando recuperar sua saúde, e ele sabe que não pode reencontrá-la sozinho. A presença de um médico que o ouça com suas explicações para a doença e o tratamento convertem o desconhecido – a doença –, em algo conhecido, o diagnóstico. Com isso, dissipam-se as inseguranças e a ansiedade. Essa situação pode ser transposta para os encontros entre os pacientes e todos os profissionais de saúde. Todavia, a consulta médica, principalmente a inicial, é quando o valor ritualístico do momento torna-se mais evidente. O primeiro laço afetivo surge (ou não) no primeiro olhar. Seria um resquício da medicina mágica?


Os mecanismos sociais se juntam aos psicológicos, e os protetores se associam a ambos. Tais mecanismos aumentam seus efeitos nos “grupos de apoio”, sejam eles quais forem: os de gestantes no pré-natal, os de dependentes químicos, hipertensos, diabéticos, portadores de AIDS e outros. Aliás, a reunião desses grupos é muito parecida com as sessões coletivas dos xamãs ou de seitas religiosas!


Os “grupos de apoio”, além de socializar conhecimentos e técnicas, desencadeiam mecanismos psicoemocionais que dissipam inseguranças, medos, culpas, ansiedade. E isso tem efeito curativo!


Os estudos sobre os rituais relacionados com o processo saúde-doença indicam que eles estão perdendo força ao longo da história da humanidade. Quanto mais desenvolvida a sociedade, mais questionados são os símbolos tradicionais. No seu lugar surgem os símbolos que caracterizam a sociedade materialista e consumista: não mais o jaleco branco e o estetoscópio, mas, agora, o terno caro, a gravata de seda e o computador de última geração.


Seja como for, jamais se poderá ignorar o ritual de uma consulta, mesmo com o desaparecimento dos símbolos tradicionais. Continua válido cultivar o componente ritualístico da consulta: o médico e o paciente, um ao lado do outro, ambos sentados à volta de uma escrivaninha, ou o médico sentado ao lado de um leito onde repousa o paciente, ali devem estar os componentes simbólicos do ritual da consulta.


Este é outro componente da medicina de excelência.



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