O trauma e a Covid-19

O trauma e a Covid-19

Desde que surgiu na China, no final de 2019, a Covid-19 modificou toda a rotina e o modo de funcionamento do mundo atual. Isto fez com que as pessoas ficassem dentro de casa, tivessem novos hábitos e rotinas, com impacto nos mais diferentes setores. Tudo mudou. O mundo não é mais o mesmo. E os hospitais mudaram também. A maior parte dos serviços públicos e privados se modificou a fim de se preparar para receber as pessoas com esta doença. Vários fluxos novos foram criados, além de setores específicos para cuidar destes doentes. Hospitais gerais foram transformados em hospitais exclusivos para Covid-19. E os demais se transformaram em hospitais mistos. Todos convivendo com a doença.


As recomendações para os hospitais, médicos e pacientes foi para que as cirurgias eletivas, que pudessem, fossem adiadas. E o movimento no pronto-socorro diminuiu. Isso no mês de março, quando tivemos a primeira morte no país. E com isso, dois fenômenos ocorreram para quem lida com o trauma: o número de doadores de sangue diminuiu drasticamente, devido ao medo da população de sair de casa e ir até um serviço de saúde e poder ser contaminada. A outra mudança que aconteceu foi com relação ao perfil do doente traumatizado. Caiu o número total de traumas, principalmente às custas do trauma fechado. Os números oficiais do DATASUS ainda são parciais, e não refletem o período maior da pandemia, mas já mostram dados significativos.


Houve uma redução do número de internações por causas externas no mês de março de 2020, quando comparado a março de 2019. O número total em todo o país caiu de 99.997 para 93.723, segundo dados do DATASUS. Por estas causas externas, entende-se, principalmente, o trauma. Nota-se nos plantões a mudança do perfil dos doentes que chegam e que são mostrados nestes dados.


Quando se detalham os números, percebe-se, ainda, uma redução significativa das internações relacionadas a acidentes motociclísticos, caindo de 9.273, em março de 2019, para 7.865, em março de 2020, uma redução de 15%. As motos são alternativas muito usadas nas grandes capitais para reduzir o tempo no trânsito, pois o motociclista segue entre as faixas de carro, e, não havendo trânsito, o risco deste tipo de acidente diminui. Temos visto nitidamente esta redução.


Houve, ainda, uma diminuição significativa de internações relacionadas a afogamentos em todo o país, de 83 para 29, quando se compara março de 2019 com março de 2020. Praias, piscinas comunitárias e clubes foram fechados e, deste modo, houve uma redução nítida neste índice. Por outro lado, houve um aumento nas internações devido a agressão por disparo de arma de fogo no Estado de São Paulo, com 53 internações em março de 2019 e 61 internações em março de 2020, um aumento de 15%. Informações provenientes de colegas do exterior já apontavam para este crescimento da violência interpessoal. Nos meus plantões na Santa Casa de São Paulo, nitidamente vi este aumento, assim como relatos de colegas de todo o país.


Os dados de abril prometem ser mais impactantes, pois foi quando a doença cresceu significativamente e a maior parte das capitais do país parou.


E o retorno às atividades, apesar dos números de infectados e mortes no começo de junho ainda estar, na melhor das hipóteses, num platô, promete ser um desafio para os serviços de saúde, pois a perspectiva dos casos de trauma aumentar é real. Ou seja, teremos doentes traumatizados e com Covid-19 convivendo nas UTIs dos hospitais de um modo mais frequente.


A perspectiva com relação à Covid-19 é que ela deverá persistir por um bom tempo, mesmo que em um nível menor. Por outro lado, é esperado que os casos de trauma voltem a crescer, e que cheguem a níveis semelhantes àqueles anteriores à pandemia.


É importante que seja pensado num planejamento de políticas de saúde neste momento. Temos uma oportunidade ímpar de aproveitar o investimento que houve em equipamentos e no aumento de leitos hospitalares. Os hospitais de campanha, quando terminar a pandemia, serão desmontados, mas muito investimento realizado é real, como, por exemplo, respiradores. Dentro de uma situação tão grave pela qual estamos passando, devemos ficar com um legado. Legado este de leitos hospitalares, leitos de UTI, valorização de profissionais de saúde capacitados e políticas de saúde visando prevenção, diagnóstico apurado e tratamento dentro dos princípios do SUS de equidade, universalidade e integridade. Na Copa do Mundo de 2014, tivemos vários estádios construídos por todo o país e que são pouco ou nunca utilizados. Por ironia, muitos foram utilizados como hospitais de campanha. Este erro estratégico para um país tão necessitado tem alto preço. E estamos pagando por ele no momento.


Deste modo, devemos estar preparados. Preparados para o futuro incerto da pandemia e do período pós-pandemia. Preparados para ter serviços de saúde com qualidade para a população. Preparados para investir de modo apropriado na saúde. Preparados para valorizar os profissionais de saúde, que foram as principais vítimas desta pandemia. Preparados para otimizar os serviços hospitalares. Uma das maneiras disso acontecer é por meio de políticas organizadas de saúde.


Com relação ao trauma, pode-se citar a portaria nº 1.365, de 8 de julho de 2013, que aprova e institui a Linha de Cuidado ao Trauma na Rede de Atenção às Urgências e Emergências, que descreve pontos fundamentais para evolução do país, tais como: reduzir a morbimortalidade pelo trauma no Brasil, por meio de ações de vigilância, de prevenção e de promoção da saúde. A prevenção reduz a lotação de serviços de saúde. Nesses três meses, ocorreu a redução de internações por trauma, porque as pessoas ficaram em casa e não ficaram expostas a acidentes. A conscientização da população para evitar situações de risco é fundamental. A implantação de núcleos de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde é importante neste projeto e está citada nesta portaria, assim como o estabelecimento da Rede de Atendimento Hospitalar ao Trauma, com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso a um tratamento integral.


A habilitação governamental de Centros de Trauma, via sociedades legítimas, fará com que o atendimento possa ser referenciado e especializado. A qualificação e treinamento dos profissionais é fundamental para que o tratamento seja adequado e padronizado. Esta portaria está publicada, e deve ser seguida, baseada nestas prioridades. Além disto, um registro nacional de dados de trauma fidedignos é fundamental para o planejamento de medidas de prevenção, preparo de serviços e otimização de recursos.


Estamos passando por um grande sofrimento nesta pandemia. Muitas pessoas queridas e próximas se foram. Esta lição não pode ser em vão. Temos de acreditar que mortes futuras podem ser evitadas. Cada vida importa. E um planejamento adequado contribuirá para evitar mais sofrimento futuro. Precisamos de uma liderança legítima neste processo, para que estejamos organizados para isto.


O diagnóstico está exposto e os princípios do tratamento estão detalhados. É hora de agir!


 


Compartilhe: