Parecer da American Epilepsy Society sobre o uso de canabidiol e derivados da Cannabis no tratamento de epilepsias e regulamentação da fabricação e importação de produtos de Cannabis pela Anvisa

Parecer da American Epilepsy Society sobre o uso de canabidiol

Introdução

Há um interesse sem precedentes da indústria farmacêutica, da mídia, dos pacientes e familiares e da sociedade em geral no uso terapêutico do canabidiol (CBD) e outros derivados da Cannabis no tratamento das epilepsias. No entanto, não há evidências de que o CBD seja a panaceia que a internet proclama. Em resposta a um apelo da Food and Drug Administration (FDA), em 16 de julho de 2019, a American Epilepsy Society (AES) emitiu seu parecer sobre o uso de Cannabis como tratamento para pacientes com crises epilépticas, resumido a seguir.


1. O CBD demonstrou eficácia moderada em alguns tipos específicos de crises epilépticas. Em 2018, uma formulação oleosa de CBD altamente purificada (Epidiolex®), derivada da Cannabis sativa, recebeu a aprovação da FDA com base em quatro estudos abertos que demonstraram diminuição de crises convulsivas tônico-clônicas generalizadas na síndrome de Dravet na dose de 20 mg/kg/dia como adjuntivo (redução ≥ 50% das crises em 43% dos pacientes vs. 27% com placebo; 5% livres de crises vs. zero com placebo) e de crises de queda na síndrome de Lennox-Gastaut (41,9% vs. 17,2% com placebo na dose de 20 mg/kg/dia). O CBD foi comparado a outros fármacos antiepilépticos (FAEs), como rufinamida e clobazam, usados no tratamento dessas encefalopatias epilépticas da infância. Outras síndromes têm merecido estudos abertos, como síndrome de Sturge-Weber, esclerose tuberosa e espasmos epilépticos, com resultados ainda longe de permitir conclusões definitivas. Mais longe ainda está a possibilidade de substituição dos FAEs convencionais por essa nova alternativa usada como adjuvante no tratamento desses tipos graves de epilepsia.


2. Embora a opinião pública o considere isento de riscos por ser um produto “natural”, o CBD tem efeitos adversos importantes. Nos ensaios clínicos realizados com Epidiolex® (o CBD da empresa inglesa GW Pharmaceuticals), sonolência, náusea, diarreia e redução do apetite obrigaram a interrupção do tratamento em 5 a 14% dos pacientes. Esses efeitos pareceram ser dependentes da dose (recomenda-se de 10 a 20 mg/kg/dia, embora alguns estudos tenham empregado de 25 a 50 mg/kg/dia). A dose de 5 mg/kg/dia parece ser a menor dose eficaz. É importante assinalar que alimentos gordurosos aumentam a absorção do CBD e, consequentemente, elevam quatro vezes os níveis da substância no sangue (ou seja, nessa condição, a dose mínima de 5 mg/kg/dia equivaleria a 20 mg/kg/dia de redução ≥ 50%). Como o CBD é insolúvel em água e apresenta baixa biodisponibilidade, várias formulações utilizam óleos (oliva, amendoim, algodão). Contudo, doses elevadas dessas preparações oleosas predispõem o organismo a efeitos gastrintestinais adversos.


3. O CBD tem farmacocinética complexa e várias interações com outros fármacos, pois é um inibidor potente dos citocromos CYP3A4 e CYP2C19, aumentando os níveis séricos de desmetilclobazam (um metabólito ativo do clobazam) em mais de 166%, topiramato, zonisamida, rufinamida e eslicarbazepina. A interação da varfarina e do CBD pode acarretar risco de sangramento. Com valproato, o CBD promove aumento das enzimas hepáticas, mas ainda não está claro se isso corresponde à disfunção hepática. Valproato e topiramato são FAEs usados na profilaxia da migrânea e em psiquiatria, o que estende esses riscos a outras populações de pacientes além daqueles com epilepsia.


4. O CBD acarreta riscos em pediatria e na gestação, pois não há informação adequada sobre os efeitos dos produtos derivados da Cannabis no cérebro em desenvolvimento. Também não há informações precisas relativas à exposição in utero quanto ao crescimento fetal e ao comportamento neonatal e na infância. Sabe-se que o uso de maconha em adolescentes é associado a alterações na ressonância magnética funcional do encéfalo.


5. Houve aumento do risco de superdosagem após a liberação do uso recreacional da maconha no estado norte-americano do Colorado em 34% de exposições não intencionais aos derivados na Cannabis. Em crianças, a superdosagem se manifesta por sedação excessiva (algumas exigiram admissão em UTI e assistência respiratória); em adultos, por hiperexcitabilidade (ansiedade, alucinações, agitação etc.).


6. A eficácia do CBD deverá ser avaliada em estudos científicos futuros. No momento, a sociedade está confusa sobre as evidências científicas atuais de segurança e eficácia do CBD e dos compostos derivados da Cannabis, gerando ceticismo na comunidade médica no que se refere ao tratamento de epilepsias e outras enfermidades. Uma das principais razões é a falta de segurança em relação às normas farmacêuticas estritas na produção dos compostos comercializados atualmente. Nos EUA, existem três modalidades de produtos farmacêuticos: o Epidiolex®, aprovado pela FDA para o tratamento da síndrome de Dravet e de Lennox-Gastaut; outros compostos derivados da Cannabis aprovados pela FDA (como Marinol, Syndros e Cesamet, usados no tratamento da anorexia em pacientes com AIDS e naqueles com náuseas e vômitos pelo uso de quimioterápicos); e produtos artesanais, completamente fora de regulamentação quanto a conteúdo, pureza e estabilidade. Entre essas modalidades, há algumas que, ao serem analisadas quimicamente e comparadas com o CBD, apresentam maior teor de tetraidrocanabinol (THC), o componente psicoativo da Cannabis. Outras estavam contaminadas por micróbios, fungos, pesticidas, metais pesados e outros produtos farmacêuticos.


Derivados da Cannabis no Brasil

No dia 9 de dezembro de 2019, a Anvisa normatizou a RDC n. 327, que versa sobre a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação de produtos de Cannabis, além de estabelecer requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização desses produtos para fins medicinais de uso humano. Eles devem possuir predominantemente CBD e não mais que 0,2% de THC, excluindo-se condições estritamente estabelecidas.


Conclusões e recomendações

Há evidências suficientes para questionar a regulamentação pela FDA dos compostos derivados de CBD e Cannabis como produtos farmacêuticos. A AES acredita que esses compostos precisam estar sob o controle regulatório total da FDA e a distribuição deve se limitar ao processo bem desenvolvido de tratamento de produtos farmacêuticos. Nesse ínterim, enquanto a regulamentação avança, etapas igualmente importantes devem ser implementadas para garantir acesso contínuo e seguro aos produtos de CBD para os pacientes que atualmente se beneficiam deles. Várias dessas exigências são relacionadas a rotulagem, embalagem e folheto explicativo e foram contempladas na RDC n. 327:

  • Rotulagem de efeitos adversos comuns e graves, bem como sintomas de superdosagem
  • Alertas na bula sobre interações com outros medicamentos
    • Alertas na bula para uso por populações especiais, como crianças e mulheres grávidas, planejando engravidar ou amamentando
    • Profissionais de saúde devem monitorar e gerenciar interações medicamentosas e ser alertados sobre possíveis sintomas de superdosagem ou toxicidade
    • Alerta na bula para incentivar os consumidores a relatar o uso de produtos derivados de CBD e Cannabis a seus médicos (p. ex., “Informe seu médico se estiver tomando este medicamento”)
    • Incentivo ao público e aos profissionais de saúde para relatarem problemas com o CBD e compostos derivados da Cannabis
    • Determinação de dose diária máxima recomendada para uso sem prescrição
    • Rotulagem clara e precisa da dose ou dosagem por unidade
    • Exposição clara das quantidades de cada canabinoide em cada produto
    • Desenvolvimento de padrões para técnicas de ensaio de qualidade do produto aplicando os níveis mais altos possíveis de Boas Práticas de Fabricação.

Referências bibliográficas

Welty TE, Chapman KE, Faught RE. American Epilepsy Society (AES): Written Comments to Norman E. “Ned” Sharpless, MD, Acting Commissioner of Food and Drugs, U.S. Food and Drug Administration (FDA), Department of Health and Human Services (HHS): on Docket ID# FDA-2019-N-1482, Scientific Data and Information about Products Containing Cannabis or Cannabis-Derived Compounds; Public Hearing; Request for Comments: Submitted on: July 16, 2019. Epilepsy Curr. 2019;19(6):361-8.


Resolução da Diretoria Colegiada-RDC n. 327, de 9 de dezembro de 2019. [Acesso em 9 jan. 2020] Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-da-diretoria-colegiada-rdc-n-327-de-9-de-dezembro-de-2019-232669072.



GEN MedClass Elza Yacubian

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