Preservação da fertilidade em pacientes oncológicos

Preservação da fertilidade em pacientes oncológicos

Os avanços tecnológicos na área da oncologia têm alcançado diagnósticos cada vez mais precoces, com maiores índices de cura dessa doença. Entretanto, a saúde reprodutiva de pacientes após o câncer quase sempre fica comprometida pelo tratamento, seja cirúrgico, quimioterápico ou radioterápico.


O aumento da expectativa de vida e de cura impõe atenção aos efeitos secundários dos tratamentos. Nesse sentido, a função ovariana e a manutenção da fertilidade são dois aspetos que mais preocupam os pacientes com câncer.


A American Society of Clinical Oncology (ASCO) e a American Society for Reproductive Medicine (ASRM) recomendam que o doente seja informado do risco de infertilidade associado ao tratamento antineoplásico, bem como das opções disponíveis para preservação da fertilidade. O assunto deve ser discutido o mais precocemente possível após o diagnóstico, e sempre antes do início de terapêutica gonadotóxica.


A abordagem realizada para a preservação da fertilidade é sempre individualizada e depende do tratamento, do tempo disponível até o início dele, da idade do paciente, do tipo de doença neoplásica e da existência ou não de parceiro.


Apesar destas recomendações, mais de 50% dos oncologistas reconhecem que não costumam abordar o tema fertilidade com seus pacientes em idade reprodutiva. As mulheres, quando encaminhadas prontamente aos centros de reprodução humana depois do diagnóstico da doença, não retardam o início do tratamento oncológico de modo significativo e conseguem realizar o procedimento para preservar a fertilidade.


A mesma orientação é válida para certas doenças autoimunes tratadas com quimioterapia, pacientes que farão transplante de medula óssea ou mulheres e homens que necessitam respectivamente de cirurgia ovariana e testicular capaz de alterar a função gonadal.


Ação da quimioterapia e da radioterapia


Função testicular


A exposição dos órgãos reprodutores masculinos à radioterapia pode lesionar o DNA celular no momento de sua replicação, durante a espermatogênese, o que resulta em inibição da divisão celular.


O epitélio germinativo é muito sensível aos danos causados pela radioterapia e sabe-se que esse dano é dose-dependente (vincula-se à quantidade de medicamento administrado por ciclo e ao número de ciclos de quimioterapia), além de variar conforme o local de irradiação.


A recuperação completa da espermatogênese, se ocorrer, é constatada durante os 2 primeiros anos após o fim da radioterapia e torna-se improvável após o terceiro ano que se segue ao tratamento.


A quimioterapia também interfere na função endócrina do homem. Quando comparado com outros tecidos, o testículo é altamente suscetível aos efeitos tóxicos do tratamento. Os achados histopatológicos na gônada podem variar e vão de alterações leves até fibrose testicular em homens adultos.


Já os danos causados nos testículos de crianças ainda são pouco conhecidos, podem aparecer após 16 anos ou mais do fim da quimioterapia e radioterapia e estarem relacionados somente com a espermatogênese; ou seja, os pacientes apresentam caracteres sexuais secundários normais por não haver alteração na produção de testosterona. Neste caso, a quimioterapia também é dose-dependente.


A concentração de espermatozoides pré-quimioterapia e a idade do paciente (estágio de maturação sexual do testículo) são fatores prognósticos importantes da função testicular após o término do tratamento. A radioterapia, quando combinada à quimioterapia, apresenta pior prognóstico reprodutivo.


Os métodos de preservação da fertilidade masculina são: congelamento de sêmen e de tecido testicular.


Congelamento de sêmen


Principal método de preservação da fertilidade masculina. A criopreservação é feita no vapor de nitrogênio líquido e o sêmen é resfriado gradativamente após a adição de um diluente protetor (até atingir -100°C). No fim do resfriamento, a amostra é mantida em nitrogênio líquido a -196°C. De 25 a 50% dos espermatozoides não sobrevivem ao processo de criopreservação. Várias técnicas têm sido estudadas para diminuir este percentual.


As amostras podem ficar armazenadas por tempo indeterminado e serem descongeladas quando o paciente optar por algum tratamento de reprodução assistidaDe acordo com a qualidade do sêmen e a quantidade de amostras disponíveis, o médico responsável indicará um procedimento de baixa complexidade [p. ex., inseminação intrauterina (IIU)] ou de alta complexidade [p. ex., injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI) ou fertilização in vitro clássica (FIV)].


Para otimizar as chances de uma futura fertilização, recomenda-se congelar, no mínimo, três ejaculados com intervalos estipulados pelo médico responsável. Esse número pode ser maior ou menor de acordo com a qualidade da amostra seminal. As taxas de gravidez utilizando o sêmen criopreservado variam conforme a técnica de reprodução assistida e a qualidade da amostra após o descongelamento. A utilização do sêmen criopreservado não aumenta complicações na gravidez ou no parto e não oferece risco genético adicional.


Congelamento de tecido testicular


Trata-se ainda de uma técnica experimental, mas pode ser a única opção em alguns casos. Espera-se que, com o avanço das pesquisas de utilização das células-tronco, a técnica de congelamento testicular possa ser uma alternativa interessante.


Função ovariana


Na mulher, a ovogênese se inicia e termina durante a vida fetal. Portanto, o número de oócitos cai por atresia ao longo do período reprodutivo, e os oócitos não são produzidos novamente.


Os folículos ovarianos são extremamente vulneráveis a agentes causadores de danos ao DNA, como radioterapia e quimioterapia. A maior parte dos fármacos antineoplásicos atua sobre as células em divisão, afetando preferencialmente as células da granulosa e da teca dos oócitos.


Os ovários de mulheres submetidas a tratamentos de quimioterapia têm um número normal ou ligeiramente diminuído de folículos primordiais, mas apresentam redução significativa de folículos maiores em maturação. Isso indica mais efeito da quimioterapia sobre a maturação folicular do que sobre os oócitos, o que, aliado à impossibilidade de regeneração do ovário, conduz à falência ovariana prematura.


A perda folicular causa fibrose do estroma ovariano e consequente perda dos oócitos. De acordo com achados histológicos, muitas mulheres desenvolvem amenorreia durante a quimioterapia, mas podem recuperar os ciclos menstruais e mesmo a fertilidade meses a anos após o fim da terapêutica, sobretudo se tiverem idade inferior a 40 anos.


Sabe-se que o número de folículos primordiais que sobrevivem após a exposição à quimioterapia depende de fatores como idade, tipo de câncer, agente utilizado, dose e número de ciclos. Importante ressaltar que a falência ovariana prematura, além de determinar o fim da função reprodutiva, implica em problemas vasomotores, esqueléticos e cardiovasculares decorrentes da supressão hormonal precoce.


Na quimioterapia, os principais fatores que influenciam no risco de falência ovariana são: idade das pacientes durante o tratamento (quanto maior, mais dano ao ovário) e regime prescrito (principalmente agentes alquilantes).


O uso de metotrexato, vincristina, adriamicina, mercaptopurina e tioguanina apresenta boa taxa de recuperação da função gonadal. Os esquemas com bleomicina, etoposido e cisplatina (BEP) e adriamicina, bleomicina, vinblastina e dacarbazida (ABVD) estão associados à recuperação moderada. Os ciclos com ciclofosfamida, clorambucil, procarbazina e cisplatina causam danos mais graves e têm recuperação gonadal pobre.


A depender do medicamento utilizado, cerca de 10% das pacientes jovens retomam seus ciclos menstruais após o término da quimioterapia, o que não significa ausência de dano ao ovário; essas pacientes apresentam alto risco de desenvolver menopausa precoce.


A radioterapia, quando utilizada para cânceres abdominopélvicos, como o câncer de reto e o do colo uterino, expõe os ovários a grandes doses de radiação capazes de causar falência ovariana. Efeito semelhante acontece em mulheres em radioterapia para tratar doença de Hodgkin e outros cânceres que acometem as cadeias pélvicas linfonodais.


Campos protetores para as gônadas devem ser utilizados sempre que possível. Outra opção é aplicar a radioterapia em territórios corporais estritos para minimizar o dano. Uma dose estimada entre 5  e 10 Gy é suficiente para resultar em perda de, pelo menos, 50% dos folículos ovarianos. De acordo com diferentes autores, doses entre 3,2 a 20 Gy podem induzir menopausa completa.


A tolerância dos ovários ao dano radioterápico diminui com o avançar da idade. A dose de 4 Gy pode causar infertilidade em 30% das mulheres com menos de 40 anos, mas atingir até 100% das pacientes com mais de 40 anos, se o tratamento ocorrer em uma mesma área. Portanto, o dano gonadal varia e depende da dose utilizada, da idade e do campo de irradiação.


A radioterapia pode causar infertilidade feminina não somente decorrente da falência ovariana, mas também do dano ao endométrio, que se torna irresponsivo ao estrogênio e mantém espessura reduzida. Pode prejudicar também a vascularização e o desenvolvimento uterino, levando a aumento da incidência de aborto, inclusive no segundo trimestre, parto pré-termo e baixo peso ao nascimento.


O restabelecimento da atividade ovariana está relacionado à idade da paciente no momento do tratamento e não costuma ocorrer em pacientes que receberam irradiação de corpo inteiro (total body irradiation).


Segundo as recomendações da American Society of Clinical Oncology, os métodos comprovadamente eficazes para preservação da fertilidade feminina disponíveis são: ooforopexia para os casos de radioterapia localizada, supressão ovariana medicamentosa, maturação in vitro de óvulos (MIV), congelamento de embriões/óvulos, congelamento de tecido ovariano e cirurgia ginecológica conservadora.


Transposição dos ovários (ooforopexia)


Transposição cirúrgica dos ovários para fora do campo de irradiação, conservando seu pedículo vascular para não ocorrer perda de irrigação sanguínea. Os ovários são movidos para cima e fixados na parte superior das goteiras paracólicas ou atrás do útero.


Trata-se de uma cirurgia ambulatorial e não requer hospitalização (a menos que seja parte de outra cirurgia maior). É indicada nos casos de radioterapia pélvica localizada, geralmente tumores de colo e linfomas. Pode ser feita por técnica laparoscópica ou laparotômica, e deve ser realizada próximo à data de início da radioterapia para evitar risco de retorno dos ovários à posição original. Muita atenção deve ser dada às condições de vascularização do ovário após a fixação ovariana, corrigindo eventuais acotovelamentos ou estiramentos das artérias nutrizes e consequente interrupção do fluxo sanguíneo local.


Tem altos índices de sucesso, dependendo do campo de irradiação. Oferece proteção gonadal em cerca de 60% dos casos e preservação da função ovariana a 83-88% das pacientes, de acordo com a técnica (laparotomia ou laparoscopia). Pacientes com mais de 40 anos costumam evoluir para falência ovariana, mesmo com a transposição dos ovários. As possíveis complicações dessa técnica são: lesões vasculares (baixo índice se realizado por mãos experientes), infarto tubário, formação de aderências e perda da função ovariana.


 Proteção das gônadas com agonistas de GnRH


A baixa incidência de perda da função gonadal em crianças submetidas à quimioterapia em período pré-puberal levantou a hipótese de que o repouso ovariano talvez diminuísse a ação tóxica dos medicamentos quimioterápicos sobre o ovário. Assim, foram propostos alguns métodos de supressão ovariana para tentar minimizar o dano gonadal e preservar a fertilidade das pacientes.


A supressão da atividade ovariana, por induzir um estado de quiescência celular, foi considerada um fator potencialmente protetor dos efeitos tóxicos gonadais produzidos pelos quimioterápicos. Ela levaria a uma inibição do processo de recrutamento folicular, evitando seu desenvolvimento posterior e consequente atresia.


O método de proteção mais estudado contra os efeitos gonadotóxicos é o emprego dos agonistas do GnRH (GnRH-a), utilizados como recurso para diminuir a apoptose induzida pela quimioterapia e tentar proteger a paciente da falência ovariana, minimizando ou prevenindo o dano gonadal durante a terapia citotóxica.


O GnRH-a também causa diminuição da irrigação sanguínea dos ovários, reduzindo a chegada das medicações quimioterápicas às gônadas. O efeito protetor dos GnRH-a pode ser insuficiente em tratamentos mais prolongados e com doses mais altas de quimioterapia.


Em artigo da Cochrane, comparando quimioterapia com o uso concomitante de GnRH-a versus quimioterapia isolada (460 participantes), constatou-se recuperação ou manutenção da função ovariana em 74,5% das mulheres que utilizaram o GnRH-a contra 50% das que não usaram, durante um período inferior a 12 meses. No entanto, não houve diferença significativa entre os dois grupos quando o período se estendeu por mais de 1 ano.


A incidência de insuficiência ovariana prematura foi de 10,7% nas mulheres que utilizaram o GnRH-a e de 25,3% nas que foram submetidas apenas à quimioterapia, o que demonstra um resultado favorável ao tratamento com essa medicação, embora seu uso ainda seja controverso. Em homens, não têm utilidade.


Maturação in vitro de óvulos


A MIV de oócitos humanos, usada para auxiliar casais inférteis na concepção de gravidez, é uma tecnologia emergente com potencial promissor. Embora relativamente nova no campo do tratamento da infertilidade humana, foi empregada com sucesso em animais e na indústria pecuária. A experiência inicial com a MIV em seres humanos produziu sucesso limitado, mas forneceu informações valiosas sobre a tecnologia. Estudos mais recentes mostraram resultados da MIV comparáveis aos alcançados com os ciclos de fertilização in vitro contemporâneos. Como resultado, o uso clínico mundial da MIV está se expandindo rapidamente, enquanto todo o seu potencial e otimização ainda estão evoluindo.


O procedimento baseia-se na recuperação de óvulos imaturos de folículos antrais não estimulados ou minimamente estimulados com posterior cultivo em meio apropriado até a sua maturação. O processo fisiológico de maturação requer o amadurecimento do núcleo e do citoplasma do oócito. No processo in vitro, os oócitos são aspirados em seus estágios finais de amadurecimento dos folículos e transferidos para condições específicas de cultura para alcançar a maturação completa. O processo de recuperação de oócitos de folículos pequenos e subdesenvolvidos precisa de equipamento e experiência adequados. Portanto, esse processo requer uma profunda compreensão do processo fisiológico de crescimento e maturação de ovócitos e folículos, equipamentos adequados e, principalmente, um suporte laboratorial experiente.


Nesse tipo de procedimento, evita-se a estimulação ovariana e, portanto, representa uma alternativa a um ciclo de vitrificação oocitária clássico. A MIV é útil para casos em que não houve tempo de realizar a estimulação ovariana, para quando se obtém óvulos imaturos após a estimulação e como complemento ao congelamento de tecido ovariano, (nos casos em que as taxas de fertilização e a qualidade do embrião estão abaixo do ideal). Importante ressaltar que a MIV, quando comparada à fertilização in vitro tradicional (considerada padrão no atendimento a pacientes com problemas de fertilidade), apresenta resultados inferiores e, portanto, constitui apenas uma alternativa.


A MIV também é crucial para o avanço e a otimização da tecnologia e para uma melhor compreensão de como maximizar o desenvolvimento de oócitos imaturos.


Criopreservação de embriões e oócitos


É a técnica estabelecida e mais aceita para a preservação da fertilidade, com evidências científicas suficientes de sua eficácia. Trata-se, portanto, do método mais utilizado para a preservação da fertilidade em mulheres.


Nesta técnica, a paciente deve ser submetida à estimulação ovarina controlada e posterior punção para obtenção dos oócitos e congelamento imediato. Todo o processo dura em média 12 a 14 dias, o que adia o início do tratamento da doença oncológica.


A maior vantagem do congelamento de oócitos é que independe de parceiros e, caso a mulher não queira utilizá-los posteriormente, os oócitos podem ser descartados a qualquer momento. Também podem permanecer congelados por tempo indeterminado, mantendo as mesmas características reprodutivas do momento do congelamento.


A maioria dos estudos concentrou na praticabilidade da criopreservação de ovócitos em pacientes com câncer, e a técnica, de fato, pode ser feita com sucesso antes do tratamento oncológico. No entanto, os resultados a longo prazo após a transferência de embriões usando oócitos criopreservados em pacientes com câncer raramente foram documentados devido ao número limitado de pacientes que retornam após a remissão completa ou estão livres de doenças e tentam engravidar.


O primeiro caso de nascimento vivo utilizando oócitos criopreservados por vitrificação foi em uma paciente com leucemia mieloide crônica (LMC), diagnosticada aos 22 anos de idade, e que solicitou a criopreservação de oócitos antes do transplante de medula óssea em 2001. Após 8 anos, a paciente se casou e, no ano seguinte, foi considerada livre da doença. Realizou a FIV após descongelar os oócitos. O resultado consistiu no nascimento de um menino saudável. Após esse primeiro caso, relataram-se inúmeros nascidos vivos bem-sucedidos de pacientes diagnosticadas com leucemia linfoblástica aguda linfoma não Hodgkin, câncer de mama e carcinoma mucoso ovariano invasivo.


Da mesma maneira, o congelamento de embriões também requer adiamento do tratamento da doença oncológica. O procedimento inicial é similar ao congelamento de oócitos até a captação deles. Então, os oócitos maduros (em metáfase II) em vez de serem criopreservados são fertilizados. Os embriões resultantes são congelados no terceiro ou no quinto dia. Estes podem ser consistentemente criopreservados e descongelados, com resultados de gravidez semelhantes aos alcançados após o uso de embriões frescos. No entanto, gera questões éticas, morais e legais. Alguns países promulgaram leis específicas que restringem (p. ex., Alemanha, Suíça, Áustria) ou mesmo proíbem (Itália) a técnica.


A opção por congelamento de oócitos/embriões para preservação da fertilidade em pacientes oncológicas pré-quimioterapia esbarra na limitação do número de oócitos que se pode conseguir e, consequentemente, de embriões. Ainda que a paciente seja submetida à indução de ovulação, o número de oócitos maduros captados disponíveis para criopreservação varia e nem sempre se consegue um bom número deles com apenas um ciclo de estímulo ovariano. Importante ressaltar que a vitrificação de oócitos/embriões tenta preservar a função reprodutiva, mas não a função hormonal da paciente, uma vez que não restabelece a esteroidogênese.


Em mulheres com tumores dependentes de estrogênio, para evitar o efeito que possa causar o aumento desse hormônio resultante do tratamento, são utilizados protocolos com inibidores da aromatase e hormônio folículo-estimulante (FSH). Autores que usaram estes protocolos em pacientes com de câncer de mama com receptores de estrogênio positivos não reportaram aumento significativo no risco de recorrência da doença ou no número de embriões obtidos, quando comparados com protocolos clássicos de estimulação ovariana, que podem aumentar os níveis de estrogênio circulantes em até 20 vezes do normal.


Portanto, a vitrificação de oócitos e embriões demonstra ser uma técnica eficaz, capaz de possibilitar que mulheres com câncer preservem a fertilidade. É possível a criopreservação de oócitos ou embriões, se houver tempo suficiente para a recuperação de ovócitos e fertilização in vitro. No entanto, o intervalo de tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento pode variar dependendo do tipo de câncer. Geralmente, a terapêutica de neoplasias hematopoiéticas requer início precoce. Todavia, para o câncer de mama, que é a neoplasia maligna mais comum diagnosticada em mulheres na idade reprodutiva, as pacientes geralmente esperam 4-6 semanas entre a cirurgia e a quimioterapia, o que seria tempo suficiente para obtenção dos oócitos.


Uma limitação desse tratamento refere-se à necessidade de estimulação da ovulação com o uso de gonadotrofinas exógenas, procedimento inviável em pacientes pré-púberes, pois suas gônadas ainda não estão sob controle do eixo hipotálamo-hipófise, e em pacientes portadoras de neoplasias malignas que necessitem de abordagem imediata, para as quais o tempo necessário para indução da ovulação postergaria o início do tratamento.


Outra limitação seria o custo do procedimento que é alto e realizado em pouquíssimos lugares pela rede pública, com número restrito de ciclos por instituição. Assim, esses tratamentos estão restritos a pacientes já na puberdade, com tempo suficiente para ser submetida a uma estimulação ovariana (i. é., que não necessitam de um tratamento oncológico imediato) e, no Brasil, possam pagar por eles.


Congelamento de tecido ovariano


Esta técnica, considerada experimental até meados de 2019, é indicada para pacientes bem seletos, em que nenhuma outra técnica seja aplicável: pré-puberes, portadoras de câncer com alta chance de metástase ovariana (leucemia) ou que tenham outras razões para não receber estímulo ovariano.


A criopreservação de tecido ovariano, hoje um procedimento bem aceito e não mais experimental, envolve a obtenção do córtex ovariano via laparoscopia ou laparotomia, seguido por dissecção do tecido em mínimos fragmentos e criopreservação utilizando técnicas como “slow-cool” ou “vitrificação”.


Desde 2017, foram documentados mais de 130 nascidos vivos usando essa técnica. Após o tratamento do câncer, o tecido ovariano pode ser descongelado e colocado na pelve. Uma vez que o tecido transplantado começa a funcionar outra vez, os óvulos podem ser coletados e fertilizados em laboratório (a mulher necessita fazer FIV para gestar).


Depois de transplantado, o tecido ovariano desenvolve um novo fornecimento de sangue e produz hormônios, mas parte do tecido costuma morrer e sua recuperação pode levar meses a anos. Como os tecidos ovarianos duram pouco, só são transplantados quando a mulher está pronta para tentar engravidar.


Atualmente, não se recomenda congelamento e transplante de tecido ovariano a mulheres com cânceres do sangue, como leucemia ou linfomas, ou câncer de ovário, em decorrência do risco de devolver células cancerígenas ao tecido congelado. Os custos de congelamento do tecido ovariano variam, assim é importante averiguar os valores a serem gastos. Em algumas pacientes, pode-se retirar tecido ovariano como parte de outra cirurgia o que reduz os custos.


As taxas de sucesso costumam ser avaliadas de acordo com a porcentagem de mulheres que recuperam seus períodos menstruais, não conforme a capacidade de ter um nascimento vivo. Em geral, cerca de metade das mulheres começa a menstruar novamente.


O congelamento de tecido cortical ovariano surge como uma possibilidade de preservar não só a função reprodutiva da paciente, mas também a capacidade de produção endógena de esteroides sexuais, evitando a necessidade de terapia de reposição hormonal posterior e, portanto, melhorando a qualidade de vida destas pacientes no longo prazo.


O restabelecimento da função ovariana pós-reimplante de tecido ovariano congelado-descongelado já foi descrito, inclusive com nascimento de criança sadia depois de falência ovariana pós-quimioterapia comprovada, seja por gestação espontânea ou por técnicas de reprodução assistida. A conservação do tecido em si, a partir de técnicas de congelamento, não é tão complicada. Hoje, já existem protocolos sugeridos por alguns serviços, com recuperação de 60 a 70% da população de folículos primordiais, com viabilidade preservada, a partir do tecido congelado.


A maior dificuldade está no período pós-reimplante imediato, quando o risco de isquemia é maior e, consequentemente, há perda folicular irreversível. Por isso, a técnica de reimplante adotada parece ser o ponto principal, e alguns autores sugerem o uso de tiras de córtex sobre o ovário atrófico, a implantação subperitoneal do tecido ovariano na fossa ovárica por meio da criação de "bolsão" ou, ainda, a implantação do córtex ovariano inteiro sobre a medula residual. Todos apresentam bons resultados, porém, com pequenas casuísticas.


A maior preocupação quanto ao uso desta técnica é a possibilidade de o tecido criopreservado conter células tumorais que possam levar à reincidência da patologia de base. Estudo apresentou resultados animadores ao demonstrar que, após o xenotransplante de tecido ovariano congelado-descongelado de portadoras de linfoma Hodgkin e não Hodgkin em ratos imunossuprimidos, não se detectou tumor em nenhum dos camundongos implantados.


Em contrapartida, três dos cinco animais que receberam implante de um fragmento de linfonodo acometido desenvolveram linfoma (controle positivo). Nos casos de câncer de mama, a incidência global de acometimento ovariano verificado em autópsias é de cerca de 11%, mas se o estádio clínico e radiológico da doença for II ou menos, a probabilidade de comprometimento ovariano é mínima. Portanto, é necessário selecionar bem os casos candidatos a reimplante de tecido ovariano criopreservado.


Para situações nas quais há contraindicação ao reimplante por risco de recidiva existem algumas propostas. Alguns autores sugerem o xenotransplante, que seria a implantação de tecido ovariano humano em animais de experimentação para crescimento folicular in vivo, com captação de oócitos e posterior aplicação de técnicas de reprodução assistida. Contudo, sua aplicação é bastante controversa do ponto de vista ético e prático. De qualquer maneira, não haveria o risco de reimplantar células malignas.


Outra possibilidade é o isolamento de folículos primordiais a partir do tecido congelado-descongelado, utilizando técnicas de digestão enzimática ou dissecção mecânica, seguida de cultivo para MIV.


As técnicas propostas atualmente para MIV de folículos, e que vêm obtendo sucesso nos centros de reprodução assistida, partem de folículos imaturos, mas em estágio de desenvolvimento mais avançado, ou de folículos antrais visualizados à ultrassonografia e captados sem estimulação de ovulação prévia ou com baixas doses de gonadotrofinas. Nos casos de tecido ovariano congelado, a MIV teria de partir dos folículos primordiais, inativos e não dependentes de gonadotrofinas; portanto, ativá-los e maturá-los é o grande desafio. Existem descrições bem-sucedidas de MIV a partir de folículos primordiais em animais, mas em humanos ainda não foi possível obter embriões.


Considerações finais


A preocupação com o futuro reprodutivo de pacientes que serão submetidos a tratamentos oncológicos, como rádio e quimioterapia, merece cada vez mais atenção quando se pensa na abordagem do paciente com câncer. A qualidade de vida a longo prazo deve ser sempre considerada, pois as taxas e o tempo de sobrevida destes pacientes aumentam cada vez mais, evidenciando as repercussões tardias, relegadas, na maioria das vezes, a segundo plano no momento do diagnóstico da doença de base.


A ASCO atualizou suas diretrizes de preservação da fertilidade em pacientes com câncer em abril de 2018 e continua a reconhecer como técnica padrão a criopreservação de espermatozoides, ovócitos e embriões para homens e mulheres interessados em preservar a fertilidade. 


Além disso, considera a supressão da atividade ovariana com GnRH-a durante a quimioterapia uma opção quando os métodos padrões não estiverem disponíveis, mas defendeu que a técnica não deve ser usada como o único método de preservação da fertilidade visto que há evidências conflitantes.


A ASCO também atualizou sua declaração sobre a criopreservação de tecido ovariano, ainda rotulada como experimental, mas reconhece que o procedimento pode restaurar a função ovariana global e ser útil a pacientes específicos.


É compreensível que o foco principal deva ser a terapia oncológica, mas é importante considerar a possibilidade de oferecer uma opção preventiva à infertilidade futura, para que a paciente tenha a liberdade de escolher depois de conhecer os riscos e as opções. Ressalta-se ainda que esses tratamentos direcionados à preservação da fertilidade em pacientes com câncer não podem garantir a gravidez no futuro, mas conferem a possibilidade de o paciente ao menos tentar.


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