PROADI | Qual o papel da caridade na construção do direito à saúde?

PROADI | Qual o papel da caridade na construção do direito à saúde?

O Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS) é resultado de um longo processo iniciado desde os anos 1990, como consequência da criação do SUS.


Desde 1498, em Portugal, quando criadas as Santas Casas de Misericórdia, a caridade, já considerada um meio para a salvação da alma e o perdão dos pecados, ganhou outra instituição para ajudar homens a encontrar o caminho para o céu e prestar serviços à humanidade.


Nessa época, as instituições faziam caridade atendendo aos pobres doentes que morreriam nos hospitais. Importante ressaltar que os pacientes com recursos não se dirigiam a hospitais, pois nada se podia fazer pela recuperação da saúde, e as pessoas acabavam morrendo em casa. Assim, a caridade, nesses locais, baseava-se no acolhimento ao doente e na salvação das pessoas que doavam dinheiro para sustentar essas instituições.


No Brasil, o conceito de caridade também foi instituído do mesmo modo. No início, o hospital tratava-se de um local de morte para os mais pobres, com algum conforto eventual, além de um meio para os doadores alcançarem o céu. Depois, tornou-se importante no atendimento a doentes pagantes e a seus agregados, que não tinham recursos próprios. Gilberto Freire, em seu livro Casa-grande e Senzala, mostra parte dessa organização da sociedade.


A partir do início do século 20, os hospitais deixaram de ser local para morrer, transformando-se em um local de cura. Isso em função da descoberta de anestesia, assepsia, medicamentos, exames etc. Além disso, recursos tecnológicos eram cada vez mais custosos e os médicos não podiam tê-los em seus consultórios.


Foi dessa maneira que se conformou o hospital moderno, que passou a ser um centro de atenção a pacientes necessitados de assistência à saúde. Paralelamente, a Medicina foi se tornando cada vez mais cara e as doações mais raras ou insuficientes. Por essa razão, começou-se a buscar meios de melhorar o financiamento dessas instituições, que contribuíam para gerar um clima de paz social e ofereciam a todos o que o Estado somente entregava a trabalhadores com carteira de trabalho assinada, por meio da previdência social. Foi quando nasceu a política pública de renunciar à cobrança de impostos de instituições de natureza não lucrativa e que respondiam também como filantrópicas. Ou seja, embora instituições sem fins lucrativos sempre fossem imunes ao imposto de renda, quando filantrópicas, elas também não recolhiam o imposto que garante o funcionamento da previdência social (a cota do empregador equivale a cerca de 27% da folha de pagamento), principal item de custo das instituições de saúde (a renúncia fiscal se reproduz também em instituições de educação e de assistência social – mas isto não será abordado neste texto).


Ao longo do tempo, outros tributos passaram também a ser isentos, em particular o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS). De uma forma geral, pode-se estimar que a renúncia fiscal equivale a cerca de 10% da receita bruta dos hospitais; para o Estado, algo em torno de 6 a 7 bilhões de reais por ano (considerando o gasto público em saúde, em 2017, em torno de 240 bilhões de reais, valor equivalente a cerca de 3%).


No desenvolvimento da relação dessas instituições com o Estado, conforme elas obtinham isenções precisavam demonstrar que faziam jus a elas. A norma válida antes da existência do SUS exigia que elas investissem, pelo menos, 20% de sua receita bruta em assistência a indigentes. Esse valor era obtido multiplicando o número e o tipo de atendimento pelo valor fixado na tabela de preços para atendimento a pacientes particulares.


Não se pode colocar em dúvida a importância dos relevantes serviços prestados pelas instituições filantrópicas para a população brasileira, mas é importante entender sua evolução e olhar para os momentos de transformação criados pela sociedade.


Em 1988, a Constituição Federal deu origem ao SUS, que foi regulamentado em 1990 pela Lei 8080 e começou a ser implantado, em 1994, como um importante marco, dada a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e a mudança na regra dos 20% da receita bruta para ter direito à isenção no recolhimento de impostos.


Até 1988, tratava-se de fazer caridade. A partir daí, acabaram os indigentes, e o Brasil passou a ter cidadãos. O SUS, apesar de todas as suas deficiências, tem como um de seus princípios a universalidade. Por isso a regra mudou – deixar de destinar mais de 20% da receita para assistência a pacientes indigentes e destinar 60% do total dos serviços a cidadãos, com ou sem acesso a algum tipo de cobertura privada.


Apenas as instituições que comprovassem atender 60% de sua capacidade com pacientes do SUS fariam jus à renuncia fiscal e seriam remunerados pelos valores das tabelas do SUS e isenção fiscal.


A partir daí, surgiu o Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI/SUS) e a “pilantropia”. Muitos hospitais, por seu padrão tecnológico, não conseguiam atender de acordo com a regra dos 60%. Assim, continuaram a usar a regra anterior e, por haver brechas legais, passaram a discutir essa questão na justiça. Um exemplo é o caso dos grandes hospitais que vieram a formar o PROADI. Outras instituições passaram a cumprir a regra dos 60%, mas há também aquelas que faziam e ainda fazem de conta que cumprem a regra dos 60%; por isso, o “pilantrópico” citado anteriormente.


O período de 1990 até 2010 foi muito rico na instituição de portarias, decretos, medidas provisórias e leis para tentar fazer com que as necessidades assistenciais e as organizacionais se encontrassem. Isso ocorreu de modo mais definitivo em 2009, com a promulgação da Lei 12101, que criou os hospitais de excelência (na verdade eles já existiam a partir de medidas legais anteriores).


Basicamente, a proposta é esses hospitais, por sua diferenciação tecnológica, apoiarem o SUS de maneira mais sofisticada, devolvendo suas renúncias fiscais em atividades compostas por projetos previamente acordados com o Ministério da Saúde (MS) e aprovadas na comissão Tripartite.


Estabeleceu-se também que, no máximo, 30% do total da renúncia fiscal fossem aplicados em ações assistenciais. O objetivo da fixação deste limite foi incentivar esses hospitais a usarem sua expertise e capacidades no apoio ao desenvolvimento institucional do SUS.


Os órgãos de controle do MS e da Fazenda, assim como o Tribunal de Contas da União e outros órgãos de controle do executivo e do judiciário, têm a responsabilidade de acompanhar as prestações de contas e verificar se esses hospitais estão, de fato, devolvendo suas renúncias fiscais à sociedade e, mais, se o resultado dessas ações está promovendo o desenvolvimento do SUS.


Ao decorrer de todos esses anos, me envolvi pessoalmente nessa construção e acredito que o resultado tem sido positivo para o SUS e para esses hospitais com histórico de envolvimento com a sociedade. É inegável que se tratam de hospitais que nasceram por vontade das comunidades de imigrantes e têm vocação para prestação de serviços.


Contudo, os tempos mudaram!


Até agora se decodificou o PROADI. Todavia, o que aconteceu com o restante das filantrópicas? Continuam usando suas renúncias e sendo remunerados pelo SUS, que paga de acordo com uma tabela não corrigida há, pelo menos, 12 anos? Como estão sobrevivendo?


Pequenos hospitais, sem nenhuma tecnologia, conseguem se virar, mas não entregam o que a sociedade demanda – assistência hospitalar adequada às suas necessidades. Hospitais de médio e grande porte, principalmente em municípios maiores, têm construído soluções para resolver o financiamento, por meio de processos de contratualização em que se busca acertar e equilibrar as contas. Outros hospitais estão em estado falimentar, e não são poucos. Algumas instituições estão enquadradas como “pilantropia”.


Qual a solução? Tratam-se de problemas complexos, que demandam soluções complexas.


Hospitais filantrópicos são hospitais comunitários, então esse é um primeiro caminho: torná-los, de fato, comunitários por meio de políticas públicas delineadas no âmbito de sua atuação e com financiamento adequado. O instrumento aqui é a contratualização.


De resto, a sociedade precisa aceitar que, em um país moderno, o espaço da caridade não pode ser o das políticas públicas. Esse não é o modo de garantir direitos essenciais ao ser humano. Pode existir a caridade, mas não para assegurar a dignidade do viver!


Em uma sociedade moderna não existe espaço para renúncias fiscais em troca de construção da cidadania. E isso não implica acabar com o espaço da caridade enquanto houver vontade humana e positiva na sociedade, mas criar instrumentos contemporâneos para garantir acesso a melhores serviços de saúde.


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