Quando suspender ou não iniciar o suporte dialítico em pacientes graves com prognóstico questionável
- 23 de mar de 2018
Por Dr. Igor Denizarde – A medicina intensiva evoluiu muito ao longo dos últimos anos e isso possibilitou o prolongamento da vida de pacientes que, no passado, tinham um prognóstico, em termos de sobrevida, reservado. O desenvolvimento de terapias de suporte extracorpóreo, aprimoramento de modos de ventilação mecânica, desenvolvimento de antibióticos de última geração e técnicas de terapia renal substitutiva (TRS) com melhor tolerância hemodinâmica são recursos disponíveis que visam a esse aumento de sobrevida. O ambiente de terapia intensiva é, portanto, o local em que todos os recursos podem ser alocados no intuito de prolongar a vida, mas também é onde os cuidados de fim de vida são instituídos.
Nesse contexto, a condução do binômio prolongamento e cuidados de fim de vida muitas vezes é desafiadora. Frequentemente, profissionais de saúde envolvidos com os cuidados de doentes criticamente enfermos deparam-se com a dúvida do benefício da instituição de técnicas de suporte vital em pacientes cujo prognóstico, não apenas de mortalidade, mas também de qualidade de vida pós-cuidados intensivos, é questionável. Tal decisão envolve não somente o paciente em si, mas também seus familiares e o próprio sistema de saúde, uma vez que o uso racional de recursos precisa ser levado em consideração. O envolvimento familiar no processo de tomada de decisão varia de acordo com a localidade. Tais diferenças são atribuídas à religiosidade, à legislação e a traços culturais, porém a comunicação entre família/paciente e equipe médica é essencial para garantir a qualidade dos cuidados de fim de vida, independentemente da localidade.
Duas populações requerem uma abordagem específica: os idosos e a população oncológica. A literatura médica sugere que idade avançada ou diagnóstico oncológico não são fatores que, isoladamente, estão associados à maior mortalidade na TRS. Todavia, sua presença ligada à baixa funcionalidade, disfunção de múltiplos órgãos ou perda cognitiva mostra piores desfechos em termos de mortalidade, fato que deve ser levado em consideração no processo de tomada de decisão de iniciar ou não a TRS em pacientes criticamente doentes com essas características.
Muito se tem discutido na literatura médica sobre a equivalência, sob o aspecto legal, ético e de impacto emocional em familiares e equipe médica, da conduta de não se instituir uma terapia de suporte vital, como a hemodiálise, ou de suspendê-la, uma vez indicada. Especialistas ocidentais defendem a visão de equivalência entre as duas condutas. A diretriz da associação americana defende o conceito de que “não há distinção ética entre a suspensão ou não início de uma terapia de suporte vital”. A opção de suspensão da terapia geralmente vem depois de um trial terapêutico sem sucesso (utilização de todos os recursos de UTI, para suporte às disfunções orgânicas, como a TRS, por um tempo predefinido), especialmente naqueles casos em que o prognóstico, inicialmente, é incerto, quando não há tempo para discussão de medidas de fim de vida ou como uma ferramenta no processo de tomada de decisão compartilhada. Essa conduta deve ser cercada de alguns cuidados. O primeiro deles é o entendimento por parte da família e/ou do paciente sobre o objetivo da proposta e o fato de que, a partir do momento que a TRS passar a ser vista como futilidade, ela será interrompida. O segundo é o desenvolvimento de habilidade de comunicação empática dos profissionais de saúde envolvidos nesse processo; e o terceiro é a compreensão dos sintomas que decorrerão após a suspensão da TRS.
Cercados de todos esses cuidados, Gajewska e colaboradores demonstraram que, durante o processo de fim de vida de 109 pacientes críticos avaliados ao longo de três meses em uma UTI na Bélgica, 50 faleceram em decorrência de limitação de suporte vital, sendo 46 por suspensão de terapia e quatro por não início. Nesse processo, houve um alto grau de satisfação entre os profissionais de saúde envolvidos, sem impacto em estresse pós-traumático familiar. Por outro lado, existe uma diferença conceitual entre não iniciar ou suspender uma terapia de suporte vital – a segunda denota uma ação, enquanto a primeira uma maneira passiva de deixar a doença seguir seu curso natural. Tal diferença conceitual causa desconforto aos profissionais de saúde e outras implicações também chamam a atenção.
Um estudo europeu com cerca de 4.200 pacientes em UTI mostrou que 99% dos que tiveram seu suporte vital retirado faleceram, em comparação com 89% daqueles que não iniciaram terapias de suporte vital (p < 0,001), com tempo médio de óbito em 4 horas do primeiro grupo, em relação a 14 horas no segundo. Tal resultado deve ser visto de maneira criteriosa, uma vez que, obviamente, os pacientes não constituíam o mesmo grupo. É interessante notar também que essa diferença passa por crenças religiosas; por exemplo, leis de judeus ortodoxos permitem a não instituição de terapia de suporte vital, porém a suspensão é proibida, interpretada como um ato de interrupção da vida, ao passo que a interrupção de terapias intermitentes é permitida, uma vez que é vista como um novo tratamento a ser instituído.
Portanto, apesar de a literatura médica interpretar, do ponto de vista ético e legal, as duas opções como equivalentes, do ponto de vista emocional e muitas vezes até cultural, existem diferenças que devem ser consideradas. Da perspectiva ética, quatro princípios devem ser sempre respeitados:
- Autonomia: é o respeito à perspectiva do paciente sobre o que é o bom para si. Uma escolha autônoma pressupõe que o paciente esteja adequadamente informado e compreenda os riscos e benefícios envolvidos.
- Não maleficência: é a obrigação de não causar dano intencionalmente.
- Beneficência: a busca pelo bem do paciente como um princípio e um objetivo.
- Justiça distributiva: benefícios, riscos e custos devem ser distribuídos de maneira justa, buscando atender de forma equânime as necessidades da sociedade.
O Código de Ética Médica, em sua última e sexta versão, determina no inciso XXI: “o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos”; e no inciso XXII reforça o caráter antiético da distanásia: “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.
Quanto à questão legal, a lei máxima e suprema do nosso país é a Constituição Federal promulgada em 1988, a qual, no artigo 1.º, quando se trata dos princípios fundamentais, apoia a dignidade humana como alicerce de nossa república; portanto, qualquer ato médico que não infrinja os princípios da bioética e vise a defender a dignidade humana não deve ser passível de punição.
Do ponto de vista ético, o objetivo da suspensão da diálise é aceitável desde que se entenda que o procedimento não traz benefícios, mas sim malefícios, e não está de acordo com o que o paciente entende por benéfico. A suspensão seria adequada como forma de propiciar uma eventual evolução natural para a morte, em uma situação clínica considerada irreversível. O objetivo não pode ser a morte, mas sim a preservação da qualidade de vida até seu último momento. A partir do momento em que há consenso sobre a suspensão de procedimentos prolongadores da vida, a diálise é um dos primeiros
suportes a serem retirados, enquanto dieta, hidratação e ventilação mecânica são, tradicionalmente, os últimos a serem suspensos.
O tempo médio entre a suspensão da diálise e o óbito está bem estabelecido em indivíduos com doença renal crônica: ao redor de 9,6 dias. Nos indivíduos com IRA, o estudo SUPPORT trouxe o dado de um tempo ao redor de 3 dias entre a suspensão de diálise e o óbito. Dispneia está entre os principais sintomas que podem ocorrer após suspensão da diálise. Evitar sobrecarga hídrica, uso de diuréticos e opioides e, eventualmente, a realização de ultrafiltração são medidas de controle de sintoma ou paliativas.
O processo de tomada de decisão da instituição/suspensão de TRS em pacientes em fase final de vida faz parte do cotidiano de todo profissional envolvido com os cuidados de doentes criticamente enfermos. Nesse processo, é importante o conhecimento de fatores prognósticos não apenas de mortalidade, mas também de funcionalidade após internação em unidade de cuidados intensivos, campo ainda aberto ao estudo na literatura médica. Diante da dúvida prognóstica ou incapacidade de consenso entre equipe e família/paciente, uma estratégia de um trial por tempo definido, com eventual suspensão de terapia após falência deste, parece ser válida, embora haja diferenças práticas entre a suspensão e não instituição de TRS.
Em qualquer cenário de cuidados de fim de vida, o desenvolvimento de habilidades de comunicação, o envolvimento multiprofissional e a capacitação no tratamento de sintomas são essenciais para uma melhor qualidade de fim de vida e redução de estresse pós-traumático familiar.
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