Resultados do “mundo real” x resultados de ensaios clínicos randomizados na era endovascular

Resultados do “mundo real” x resultados de ensaios clínicos randomizados na era endovascular

Por Dr. Marcone Lima Sobreira – Nós, cirurgiões vasculares e endovasculares, há muito perseguimos os melhores resultados para nossos pacientes, sempre se utilizando das técnicas mais recentes e inovadoras divulgadas no meio científico. A cada dia surge um dispositivo novo e mais fantástico, com eficácia e segurança superiores aos seus predecessores. Entretanto, muitas das vezes não conseguimos replicar esses resultados em nossa prática diária, de modo que nos questionamos como podemos incorporar os novos guidelines de ensaios clínicos randomizados (ECR) na nossa prática clínica diária, e como ensinar a melhor prática clínica a profissionais menos experientes (durante a residência médica, por exemplo). A difusão do conhecimento de novas tecnologias tende a seduzir profissionais mais jovens, impulsionando-os a testar novos dispositivos, no afã de oferecer o melhor e mais moderno serviço para o seu paciente, mas muitas vezes esquecendo do custo agregado a esses novos tratamentos.


Deve-se lembrar, no entanto, que os resultados apresentados pelos grandes ECR são consequentes de rigorosos critérios de inclusão e exclusão que conduzem à escolha do melhor paciente para o melhor produto. Por outro lado, ao sair dos umbrais metodológicos dos grandes estudos, a replicação dos resultados apresentados torna-se muito difícil. Tomemos como exemplo, as recomendações baseadas nos resultados apresentados pelo Carotid Revascularization Endarterectomy versus Stenting Trial (CREST):1 como opção à endarterectomia, a American Heart Association (AHA) recomenda o implante de stent em carótida para pacientes sintomáticos, quando o risco de AVC e morte perioperatório daquele centro for menor que 6%. Entretanto, em 2016, uma revisão sistemática compilou resultados de 21 registros com dados de mais de 1,5 milhão de pacientes submetidos a implante de stent em carótida e demonstrou que os limites de indicação recomendados pela AHA foram excedidos:2


  • Em 43% dos registros (9/21) para endarterectomia em pacientes assintomáticos
  • Em 28% dos registros (5/18); o risco pós-operatório do implante de stent em pacientes sintomáticos foi maior que 10%, contrariando as recomendações.

Esses dados corroboram o fato de que a prática real diverge da divulgada pelos grandes ECR. Ou seja, o paciente da prática clínica diária pode ser bem diferente daquele geralmente incluído nos grandes estudos. Desse modo, não devemos nos engessar em nossas indicações e contraindicações.


É importante lembrar também que, em geral, os centros norte-americanos e europeus, incluídos nesses grandes ECR apresentam um volume de pacientes consideravelmente maior do que a grande maioria dos outros centros, pois há um esforço para que pacientes potencialmente elegíveis sejam obrigatoriamente encaminhados para esses grupos, o que aumenta sobremaneira a expertise dos centros dos ECR e implica diretamente em melhores resultados, que servem como meta da boa prática clínica.


Outro exemplo interessante são os ECR sobre tratamento de doença arterial periférica (DAP): os tipos de pacientes incluídos em alguns dos grandes trials (Resilient trial, Zilver trial, Sirocco trial, entre outros) são diferentes dos pacientes brasileiros. Nesses estudos, pacientes com Rutherford 3 correspondem a uma grande parte dos participantes, e os resultados do Resilient trial, por exemplo, demonstraram que o implante de stent é superior em comparação à angioplastia isolada. Em contraponto aos dados nacionais coletados pelo grupo RHEUNI* em atendimentos de serviços públicos de saúde, em um universo de mais de 1.700 pacientes submetidos a tratamento cirúrgico (convencional aberto e endovascular) por DAP, aproximadamente 91% foram categorizados como Rutherford 4, 5 e 6 (isquemia crítica),## o que evidencia que pacientes brasileiros são bem diferentes dos pacientes dos grandes trials. Isso talvez justifique os resultados brasileiros abaixo da média apresentada nos estudos europeus e norte-americanos: população diferente, resultados diferentes.


Há uma grande quantidade de médicos residentes sendo formados com fácil acesso aos resultados de estudos envolvendo novas tecnologias norte-americanas e europeias. No entanto, são resultados “distorcidos” para a realidade brasileira, onde o serviço público de saúde tem eficácia lenta e curto alcance. É importante salientar que a técnica (cirurgia aberta convencional ou cirurgia endovascular) deve ser adaptada ao paciente, e não o contrário. Também somos cirurgiões vasculares, e ainda existem endarterectomia carotídea, enxerto fêmoro-poplíteo, enxerto aorto-aórtico, entre outros procedimentos. Faz-se necessário balancear o treinamento dos nossos residentes entre cirurgias abertas e endovasculares. É necessário um mínimo de procedimentos abertos para certificação do médico (nos EUA, exige-se um mínimo de 30 grandes procedimentos abdominais, 25 cerebrovasculares, 45 procedimentos periféricos, 20 correções endovasculares de aneurisma de aorta abdominal, por exemplo).


Estabelecidas as diferenças entre os cenários nacional, norte-americano e europeu, torna-se essencial saber quem é e de que maneira se comporta o paciente brasileiro. É preciso conhecer dados nacionais, fazer o diagnóstico dos nossos pacientes para que tenhamos um protocolo de condutas próprio, mais próximo da nossa realidade. É preciso criar uma base nacional (ou, pelo menos, estadual) para registro e compilação de dados a fim de classificar os pacientes atendidos diariamente, para então oferecer o melhor e mais adequado tratamento: o “best medical treatment” dos trópicos.


Referências bibliográficas


Brott TG, Hobson RW 2nd, Howard G, Roubin GS, Clark WM, Brooks W, et al. CREST investigators. Stenting versus endarterectomy for treatment of carotid-artery stenosis. N Engl J Med. 2010;363:11-23.


Paraskevas KI, Kalmykov EL, Naylor AR. Stroke/death rates following carotid artery stenting and carotid endarterectomy in contemporary administrative dataset registries: a systematic review. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2016;51:3-12.


* Registro dos hospitais estaduais universitários no interior do estado de São Paulo (RHEUNI): FAMEMA (Marília), FAMERP (São José do Rio Preto), UNESP (Botucatu), Unicamp (Campinas) e USP (Ribeirão Preto).


## Dados apresentados em eventos científicos, mas ainda não publicados.


 


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