Soprando contra o vento

Soprando contra o vento

Em 1985, o bioestatístico Richard Peto se reuniu com o experiente cardiologista Peter Sleight e uma equipe da Universidade de Oxford, na Inglaterra, para dar início à segunda etapa de um ambicioso projeto cujo objetivo era reduzir a mortalidade por infarto agudo do miocárdio (IAM). O estudo recebeu o nome de International Study of Infarct Survival – ISIS 2.


A ideia era simples: testar duas medicações com benefício potencial para tratamento da doença que era, e ainda é, a principal causa de morte no mundo. Até então, pouco se fazia pelo tratamento do IAM, apesar de estudos menores das décadas de 1960 e 1970 mostrarem provável benefício do ácido acetilsalicílico (AAS), um inibidor da atividade das plaquetas de uso oral, e da estreptoquinase (SK), um trombolítico de uso endovenoso. Ambos visam, em última análise, dissolver o coágulo nas artérias coronárias responsável pela maioria dos casos de IAM.


Na empreitada para convencer hospitais de vários países a embarcar no projeto, ficou famosa a negativa de um diretor inglês, que recusou participar alegando que essas medicações trariam um risco muito alto de sangramento e que os idealizadores estariam “soprando contra o vento”, fazendo frente a uma doença cuja evolução pouco se conseguiria mudar.


No fim das contas, o estudo randomizou mais de 17 mil pacientes em 16 países, dispondo de um centro telefônico em Oxford 24 horas para auxílio na alocação aleatória dos pacientes com IAM em 4 grupos de intervenção terapêutica: AAS isolado, SK isolada, ambas as medicações ou nenhuma delas (neste caso, substituídas por dois placebos). Os médicos não tiveram acesso a qual tipo de medicação seus pacientes estavam recebendo (estudo duplo-cego).


Em 1988, o ISIS 2 foi publicado na renomada revista The Lancet, e os pacientes randomizados foram acompanhados por 30 dias. As medicações foram eficazes na redução de mortalidade cardiovascular pós-IAM, e o melhor: a chance de morte em 30 dias pós-IAM reduziu de 13,2% no grupo placebo para 8% no grupo que recebeu as duas medicações combinadas. Em que momento – mesmo hoje, quando se dispõem de potentes antiplaquetários, novos trombolíticos e stents modernos – um estudo em Cardiologia conseguiu reduzir, em “uma só tacada”, a mortalidade cardiovascular pela metade?


Dados oficiais do sistema público de saúde brasileiro reportam que, em algumas regiões do nosso país, a mortalidade por IAM se aproxima dos 15%!


– Precisamos soprar contra o vento.



Referências bibliográficas


  1. RANDOMISED TRIAL OF INTRAVENOUS STREPTOKINASE, ORAL ASPIRIN, BOTH, OR NEITHER AMONG 17 187 CASES OF SUSPECTED ACUTE MYOCARDIAL INFARCTION: ISIS-2. Lancet. 1988;332(8607):349-60.
  2. Keating C. The social history of ISIS-2: The early history. Triumph and the path not taken. Lancet. 2015;386(9994):646-7.

 


Observação


Historicamente, o verbo utilizado pelo diretor inglês não foi “soprar”, mas usei da licença literária para suprimir um verbo escatológico.


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