Tudo para Todos Gratuitamente na Saúde?
- 13 de mar de 2017
O artigo 6 da Constituição, o qual dá forma à democracia brasileira e trata dos direitos sociais, e os artigos 196 a 200, que tratam da saúde, respondem categoricamente ao título deste texto. Sim, o acesso à saúde é universal, integral e deve ser realizado de maneira igualitária.
O tema “igualdade” sempre suscita o debate sobre quem tem menos e, portanto, deve receber mais. Por exemplo, 4,3% das crianças que nascem na zona leste da cidade de São Paulo morrem antes de completar 1 ano, enquanto 1,5% das nascidas na região Centro-Oeste morrem no mesmo período. Os indicadores que atestam as diferenças na qualidade de vida e na taxa de mortalidade entre os mais e os menos favorecidos são múltiplos e incontestes.
Também é inegável que aqueles que menos têm devem receber uma atenção mais detalhada, pois a saúde é um poderoso instrumento de construção de igualdade social e inclusão.
Todos os modernos países do hemisfério norte têm a saúde como um direito essencial, universal e gratuito – e pagam por isso, construindo sociedades mais justas. Então, como financiar tudo para todos e ainda garantir uma diferenciação a favor dos mais pobres?
Existem muitos atores importantes contestando o “tudo para todos”. A proposta que está sendo discutida às claras é um sistema de saúde privado excelente para quem pode pagar e um Sistema Único de Saúde (SUS) fraco para os pobres, que oferece o que a sociedade aceita financiar. E essa proposta, de certa forma, reflete-se em muitas outras políticas sociais, que replicam a tendência de não pensar em inclusão e, em vez disso, manter os pobres ao largo da sociedade até que esta tenha condições de assumi-los.
A questão central é: a sociedade brasileira está de acordo com essa visão? Ou essa, na verdade, é a visão dos que detêm de fato o poder político e estão querendo melhorar a sua capacidade de decidir como garantir que seu pedaço do que a sociedade brasileira produz seja sempre crescente?
O francês Thomas Piketty, em seu O Capital no Século XXI (Intrínseca, 2014), escancara essa questão. Talvez não seja possível concordar com tudo o que ele expõe, mas a ferida fica aberta, sem dúvida. Os leitores que quiserem aprofundar esse tema devem buscar ler seu livro; aqui somente desejo demonstrar que uma escolha está sendo feita e que precisamos criar uma alternativa a esse modelo de sociedade, dividida entre os excluídos e os que têm acesso a tudo.
A nossa Lei Maior propõe uma visão de futuro e uma sociedade diferente, melhor. E com certeza a economia brasileira neste momento não consegue financiá-la. Como elaborar, então, estratégias que não aumentem a exclusão social? Que escolhas teremos de fazer?
Sem dúvida precisamos assumir o compromisso de melhorar a gestão do SUS que hoje temos, e o maior desafio é a regulação regional e estadual. Regular é construir acesso. Devemos garantir que o acesso a TODOS os serviços e atos médicos se dê por meio de um modelo regulatório transparente e universal. Seria o mesmo modelo que tão bem construímos para regular o acesso aos transplantes. Não deve ser fácil, pois exigiria mudar o nosso modelo de municipalização autárquico para um modelo de gestão regional, com forte presença política do nível estadual na sua coordenação. Além disso, para alguns atos de maior complexidade, precisaríamos de redes supraestaduais, e, nesses casos, a responsabilidade seria do Ministério da Saúde. Mas realço: embora haja problemas técnicos a serem enfrentados, o principal obstáculo é político.
A questão seguinte e menos complexa, mas que tem causado forte impacto no financiamento da saúde (e que tem o poder judiciário como um ator importante), é a incorporação de tecnologia e, portanto, do acesso a essa tecnologia. Já temos por enquanto algumas decisões prévias – o que a Lei 12401/11 define como política de incorporação de tecnologia deve valer para toda a sociedade. Inclusive para os juízes. É uma lei que cria um órgão – a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) – que define com base em critérios científicos (a medicina baseada em evidências) que tecnologia deve ser colocada à disposição da sociedade por meio do SUS, e proponho que essa regra passe a valer também para a Assistência Médica Supletiva (AMS). Da mesma forma, a lei 9782/99 que criou a ANVISA e regula a entrada e acesso de produtos e medicamentos no pais, deve ser respeitada.
A tabela de procedimentos que a AMS é obrigada a oferecer aos compradores de planos de saúde deve ser igual à do SUS, com financiamento direto pelo pagador/comprador do plano. O fundamental é que o acesso a novas e antigas tecnologias seja regulado pelo Estado por meio de políticas e órgãos públicos específicos. E o judiciário deve resumir seu ativismo, não tomando decisões em nome do executivo, como ocorre hoje, e sim quando as políticas públicas não forem cumpridas, seja no SUS, seja na AMS.
Assim, se o Estado procrastina a análise da incorporação de uma nova tecnologia, sem respaldo legal, geralmente por motivo financeiro, o judiciário não deve garantir acesso a um cidadão com posses que conseguiu chegar ao judiciário, e sim punir o agente público e garantir aquela tecnologia a todos os brasileiros. Se um plano de saúde se recusa a financiar um tratamento já aprovado pela ANVISA e CONITEC, o judiciário deve fazer com que o plano cumpra com sua obrigação.
Sem dúvida, são duas transformações imensas, mas o marco legal existente é suficiente. Para um verdadeiro Estado de bem-estar social, faltam políticos comprometidos, um judiciário renovado e uma sociedade esclarecida e, consequentemente, empoderada.