Utilização de cadáveres no ensino e na pesquisa médica

Utilização de cadáveres no ensino e na pesquisa médica

Por Dr. Genival Veloso de França – Até pouco tempo, não havia qualquer legislação que disciplinasse especificamente a utilização do cadáver – ou parte dele – para fins didáticos e de pesquisa médica ou científica. Existiam, apenas, vagas referências em regulamentos correlatos. O que se tinha era uma tradição oral, que substituía a própria lei. Ocorria, na prática, entregar os corpos não reclamados às escolas médicas e a outras áreas da saúde.


Com a edição da Lei no 8.489 de 18 de novembro de 1992, que tratava da retirada de órgãos, tecidos e partes do cadáver com finalidade terapêutica ou científica, pensou-se ter contemplado o uso destinado a ensino e pesquisa. No entanto, a lei referia-se apenas aos casos de transplantes.


A justificativa de ceder corpos às escolas da área da saúde é a de não se entender a instrução desses profissionais sem o estudo da anatomia humana. Por outro lado, não se pode esquecer a questão do respeito à dignidade individual, conciliando o ensino e a pesquisa com uma maneira lícita de usar o corpo inanimado.


Portanto, entre outros, foi apresentado à Câmara de Deputados anteprojeto de lei dispondo sobre o uso do cadáver com essa finalidade. Primeiro, estatuía-se que tal disponibilidade seria privativa dos estabelecimentos oficiais ou reconhecidos, responsáveis pela formação de profissionais de nível superior, que tratam da saúde e da investigação científica. O uso seria autorizado por meio de instrumento público ou particular, manifestado em vida pela livre vontade do disponente ou utilizando corpos não reclamados. Não seriam usados os cadáveres de crimes ou de suspeita de crimes, nem aqueles em situações de proibição judicial.


Este anteprojeto de lei, de autoria do deputado Américo Brasil, teve a contribuição do Dr. Sávio Pereira Lima, ex-diretor do Instituto Médico-legal de Brasília, e do Prof. Hermes Rodrigues de Alcântara, da Universidade Nacional de Brasília e da Universidade do Distrito Federal.


Há algum tempo, por meio da Portaria no 86 de 17 de janeiro de 1980, o Ministério de Educação e Cultura criou uma comissão especial com o propósito de estabelecer normas de disciplina sobre o uso de cadáveres para estudo de anatomia humana nas escolas da área de saúde. Tal comissão, depois de exaustivo e enfadonho relatório, apresentou um anteprojeto de lei dispondo sobre a cessão do cadáver para fins didáticos e científicos.


O Poder Executivo sancionou a Lei no 8.501 de 30 de novembro de 1992, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudos ou pesquisas científicas. Disciplina, entre outros, que o cadáver não procurado no prazo de 30 dias poderá ser destinado às escolas de medicina. Nos casos de mortos sem documentação ou aqueles identificados, mas sem informações relativas a endereços de parentes ou responsáveis legais, a autoridade competente publicará nos principais jornais da cidade, a título de utilidade pública, a notícia do falecimento durante, pelo menos, 10 dias.


Determina também que nos casos de morte violenta, compulsoriamente submetido à necropsia médico-legal, está vedado o uso do cadáver quando houver indícios de ação criminosa. Obriga ainda o responsável pela instituição de ensino a manter, para fins de reconhecimento, dados relativos às características gerais do falecido por morte natural: sua identificação, fotografias, ficha datiloscópica, resultado de necropsia (quando necessária) e outros dados e documentos julgados pertinentes. Só assim o cadáver será liberado para o estudo e para a pesquisa, permitindo o acesso aos elementos referentes ao reconhecimento do morto a familiares ou representantes legais, a qualquer tempo.


Sempre fomos contrários a uma legislação sobre tal matéria. Acreditamos ser perigoso desafiar o sentimento humano e os institutos imemoriais, principalmente em uma hora tão delicada. Mais importante que o desafio de estabelecer uma lei é sensibilizar a opinião pública, mostrando a necessidade imperiosa de utilizar o cadáver no ensino e na pesquisa. Mas que se faça isso sem a mácula da coerção e da discriminação ostensiva. Assistimos, durante todos esses anos, que, na prática, as situações vão se acomodando pelos costumes e pelo nível progressivo de consciência da população, que eventualmente entenderá não ser possível, por exemplo, um médico ser privado na sua formação acadêmica dos indispensáveis estudos da anatomia humana. Eis a legislação pertinente e em vigor à citada matéria:


LEI No 8.501, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1992


Dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudos ou pesquisas científicas e dá outras providências.


O VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA no exercício do cargo de PRESIDENTE DA REPÚBLICA


Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:


Art. 1o Esta Lei visa disciplinar a destinação de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, para fins de ensino e pesquisa.


Art. 2o O cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.


Art. 3o Será destinado para estudo, na forma do artigo anterior, o cadáver:


I – sem qualquer documentação;


II – identificado, sobre o qual inexistem informações relativas a endereços de parentes ou responsáveis legais.


  • 1o Na hipótese do inciso II deste artigo, a autoridade competente fará publicar, nos principais jornais da cidade, a título de utilidade pública, pelo menos dez dias, a notícia do falecimento.
  • 2o Se a morte resultar de causa não natural, o corpo será, obrigatoriamente, submetido à necropsia no órgão competente.
  • 3o É defeso encaminhar o cadáver para fins de estudo, quando houver indício de que a morte tenha resultado de ação criminosa.
  • 4o Para fins de reconhecimento, a autoridade ou instituição responsável manterá, sobre o falecido:
  1. a) os dados relativos às características gerais;
  2. b) a identificação;
  3. c) as fotos do corpo;
  4. d) a ficha datiloscópica;
  5. e) o resultado da necropsia, se efetuada; e
  6. f) outros dados e documentos julgados pertinentes.

Art. 4o Cumpridas as exigências estabelecidas nos artigos anteriores, o cadáver poderá ser liberado para fins de estudo.


Art. 5o A qualquer tempo, os familiares ou representantes legais terão acesso aos elementos de que trata o § 4o do art. 3o desta Lei.


Art. 6o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


Art. 7o Revogam-se as disposições em contrário.


Brasília, 30 de novembro de 1992; 171o da Independência e 104o da República.


ITAMAR FRANCO


Maurício Corrêa


Bibliografia


França GV. Medicina Legal. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara; 2015.


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