O novo coronavírus transformou o trabalho das equipes de saúde
- 20 de ago de 2020
A pandemia da COVID-19 está mostrando a importância da abordagem multidisciplinar no tratamento dos pacientes. O ineditismo da doença tem exigido que tanto médicos como demais profissionais de saúde trabalhem em conjunto, de igual para igual, de maneira colaborativa e aprendendo uns com os outros.
A explicação é simples: o inusitado da COVID-19 é justamente a falta de um diagnóstico único e preciso. A amplitude de sintomas apresentados pelos infectados, a necessidade de prescrições individuais, caso a caso, e a evolução particular de cada quadro demanda a colaboração de pneumologistas, imunologistas, hematologistas, cardiologistas, gastroenterologistas e intensivistas, entre outros especialistas médicos, além de enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos, todos empenhados na manutenção da vida do paciente.
O interessante – e gratificante, mesmo diante desta situação adversa – é que estamos acompanhando um verdadeiro trabalho cooperativo. As visitas aos pacientes internados nas unidades de terapia intensiva (UTI) – situação, infelizmente, muito comum aos acometidos pela COVID-19 – são uma prova desse novo protocolo: colaboradores de áreas diferentes visitam os leitos em grupos multifuncionais a fim de obter um prognóstico mais abrangente de cada caso.
Sem dúvida, em uma equipe multidisciplinar, o médico acaba tendo protagonismo por estar habilitado com o conhecimento técnico para agir, principalmente quando a vida do paciente está em risco, mas o cenário da COVID-19 deixa claro que os demais profissionais são essenciais na rotina dos internos, em especial no ambiente de UTI.
A enfermagem, por exemplo, é a alma dos hospitais: enfermeiros e auxiliares acompanham diariamente as evoluções e involuções de cada paciente. Psicólogos tratam a ansiedade, o medo e a insegurança de quem está em condição vulnerável e longe da família, às vezes também tratando os seus familiares. Assistentes sociais dão suporte e informações aos parentes que precisam se manter distantes pelo risco de infecção. Fisioterapeutas respiratórios são estratégicos em procedimentos como o desmame do respirador. Esses são alguns exemplos de diversos profissionais que fazem a diferença no tratamento da COVID-19.
Mudança de hábito
Apesar de comum em outros países, o trabalho multidisciplinar propriamente dito ainda é novidade no Brasil. A ideia de cada um fazer a sua parte, mas com maior integração entre as áreas, é mais evidente em especialidades como a oncologia – o tumor estará em um ou mais órgãos e o tratamento ou a cirurgia exigirá também o acompanhamento do médico da especialidade correspondente.
Na cardiologia não é diferente. Nós, cardiologistas, somos dependentes da interdisciplinaridade para o bom andamento dos tratamentos: orientamos o paciente a parar de fumar, o que exige acompanhamento psicológico; sugerimos que aprimore a dieta, o que requer a orientação do nutricionista; propomos a prática de atividade física, que dependerá de um educador físico; solicitamos o acompanhamento do dentista, uma vez que muitas doenças cardíacas têm relação com a saúde bucal.
Por tudo isso, a visão integralista da medicina está no DNA da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) há cerca de 30 anos. Na entidade, a integração de cardiologistas, demais especialistas médicos e outros profissionais de saúde já é uma prática desde a década de 1990. A Sociedade mantém departamentos de Psicologia, Enfermagem, Fisioterapia, Serviço Social, Odontologia, Farmacologia, Nutrição e Educação Física, que contribuem nas discussões promovidas pela entidade, tanto em congressos oficiais como no dia a dia, além de comporem um grupo de estudos sobre cuidados paliativos.
No último Congresso Virtual de Cardiologia da Socesp, ocorrido entre 29 de junho e 2 de julho de 2020, não foi diferente. A programação contou com temas abrangentes, como “Uma doença do corpo e da alma: a atenção psicológica no enfrentamento da pandemia da COVID-19”; “Desafios e resultados da implementação de hospitais de campanha sob a ótica da enfermagem”; “Entendendo os desafios do suporte ventilatório na COVID-19: evidências relevantes”; “O farmacêutico clínico na assistência aos pacientes cardiológicos com COVID-19”; “COVID-19 e metabolismo lipídico” e “Os desafios dos profissionais de serviço social em tempos de pandemia”.
Hierarquização
A inovação da interdisciplinaridade ainda tem como obstáculo certa hierarquização da medicina. Mesmo quando o médico compreende a necessidade de outro médico ou profissional técnico para a boa conduta, será ele quem fará a indicação e o encaminhamento ao fisioterapeuta, à nutricionista, ao psicólogo etc. Há, ainda, médicos que acreditam que podem centralizar outras condutas, como indicar a melhor dieta, orientar exercícios físicos e oferecer suporte psicológico.
Mas nenhuma formação em saúde é completa. Cada profissional tem seu ponto forte e seu conhecimento específico, e negar isso pode trazer enorme prejuízo ao paciente: sem prescrição para sessões de fisioterapia, por exemplo, o paciente não poderá acessar o serviço via convênio.
A integração é o caminho funcional e benéfico para todos os envolvidos nesse processo. O paciente não é um fígado, um rim ou um coração. Ele é um organismo que precisa ser avaliado em sua pluralidade, levando em conta o histórico de vida, as queixas e os sentimentos envolvidos. O desafio imposto pela COVID-19 veio ensinar novas lições e prescrever novas práticas médicas, como a intercooperação na área da saúde. Resta fazer uso dessa receita.