Índice de pressão tornozelo-braquial por ultrassom Doppler na prática clínica

Índice de pressão tornozelo-braquial por ultrassom Doppler na prática clínica

Por Dr. Ronald Flumignan – O físico austríaco Johann Christian Andreas Doppler (1803-1853) observou as diferentes colorações assumidas por certas estrelas e questionou o motivo desse fenômeno. Em 1842, ele descobriu o efeito modificador da frequência de vibração causada pelo movimento relativo entre a fonte e o observador. O “efeito Doppler”, como se tornou conhecido, ainda é usado, por exemplo, em teorias científicas modernas para a origem do multiverso primitivo (Big Bang e the redshift) e também em radares, na navegação, no estudo do movimento das estrelas e na Medicina.


Nas doenças vasculares, o efeito Doppler aplica-se à mudança de frequência causada pela velocidade das células sanguíneas (glóbulos vermelhos e brancos). O aparelho Doppler portátil mais usado na prática clínica utiliza ultrassom de ondas contínuas produzido por cristais piezoelétricos. Um cristal emite continuamente o sinal de ultrassom enquanto o outro capta o eco, ou seja, o ultrassom refletido pela estrutura de interesse. Esse dispositivo trabalha com frequências entre 5 e 10 MHz; a menor (5 MHz) captura vasos mais profundos por seu maior poder de penetração tecidual, já a maior (10 MHz) captura vasos mais superficiais, tornando-se melhor para o estudo dos vasos distais dos membros.


A simplicidade do ultrassom Doppler é, sem dúvida, o que mais contribui para sua adoção como ferramenta vascular preliminar. Como se trata de um detector de velocidade do sangue, pode ser usada para determinar a pressão sistólica das artérias, alvos do estudo. Sua aplicação mais frequente é na aferição das pressões sistólicas dos membros para efeito comparativo, como no índice tornozelo-braço (ITB).


Nesse caso, torna-se também necessário um esfigmomanômetro que será usado em determinados segmentos dos membros superiores e inferiores para ocluir o fluxo sanguíneo temporariamente e, por conseguinte, avaliar a pressão arterial relacionada.


A correlação entre o tamanho do manguito pneumático e a circunferência do tornozelo não está bem estabelecida, devendo-se adotar a mesma razão utilizada no membro superior. Portanto, o manguito pneumático deve cobrir, no mínimo, 40% da circunferência do membro em que se medirá a pressão arterial sistólica. Esquematicamente, a técnica para se obter o ITB com qualidade seria:


  • Certificar-se de que o paciente não fumou, pelo menos, 2 h antes do teste
  • Posicionar o paciente em decúbito dorsal com a cabeça e os calcanhares completamente apoiados no leito. Mantê-lo em repouso por 5 a 10 min
  • Pedir ao paciente para permanecer imóvel durante o exame
  • Colocar o esfigmomanômetro em torno de, pelo menos, 40% do membro, aplicar o gel no sensor Doppler e posicioná-lo na zona de pulso em um ângulo de 60° com a provável trajetória do vaso analisado (normalmente, 45° a 60° com a pele). Mover a sonda até o som mais nítido se tornar audível
  • Deve-se insuflar o manguito progressivamente até 20 mmHg acima do nível de desaparecimento do sinal de fluxo e, então, deflacionar lentamente para detectar o nível de pressão no reaparecimento do sinal
  • A sequência de aferições da pressão arterial sistólica deve ser, preferencialmente, braço direito, tornozelo direito, tornozelo esquerdo, braço esquerdo e, outra vez, braço direito (repetido para evitar valores falsamente altos resultantes de ansiedade ou do “efeito do avental branco”).

A seguir, divida o valor da pressão da artéria alvo pelo valor da pressão da artéria braquial. Normalmente, o ITB expressa, em número absoluto (sem unidade de medida), o maior valor obtido nas artérias tibiais e braquiais. Similarmente, pode-se determinar o índice de pressão da artéria poplítea ou das artérias dos braços em relação um ao outro.


O valor normal do ITB varia entre 0,9 e 1,4.1 Resultados menores que 0,9 indicam obstrução arterial, normalmente crônica (OAC), e estão correlacionados com risco 2 a 3 vezes maior de morte (inclusive cardiovascular). O valor do ITB também está relacionado com sintomas de OAC e sua gravidade: ITB entre 0,7 a 0,8 indica claudicação intermitente, 0,4 a 0,5, dor ao repouso, e 0,2 a 0,3, gangrena e úlceras não cicatrizadas.


ITB maior que 1,4 sugere enrijecimento arterial, normalmente por calcificação arterial medial, e também aponta maior risco de eventos cardiovasculares e mortalidade. Essa situação é mais prevalente em pacientes idosos, principalmente naqueles com diabetes ou doença renal crônica. Nesses casos, costumam ser necessários estudos não invasivos adicionais, como registro do volume de pulso, que indica uma forma de onda não afetada pela calcificação medial da artéria. Outra possibilidade é a aferição do índice hálux-braço, já que as artérias digitais tendem a se manter preservadas dessa calcificação. Importante ressaltar que se deve usar manguito apropriado, com tamanho reduzido, para aferir a pressão do hálux.


Para diagnóstico e acompanhamento da OAC, deve-se interpretar o ITB de cada membro inferior, separadamente. Para estratificação de risco cardiovascular, utilizar o menor ITB entre os dois membros.


Todavia, quem deve ser submetido a esse método na prática clínica? Segundo o guideline publicado em 2018 pela European Society for Vascular Surgery, o ITB deve ser realizado em todas as seguintes situações:1


  • Pacientes com suspeita clínica de OAC
  • Ausência de pulso nas extremidades inferiores e/ou sopro arterial
  • Claudicação intermitente ou sintomas sugestivos de OAC
  • Ferida na extremidade inferior sem cicatrização
  • Pacientes com risco de desenvolver OAC em decorrência de seus antecedentes clínicos (doenças ateroscleróticas coronárias ou arteriais periféricas, aneurisma de aorta abdominal, doença renal crônica, insuficiência cardíaca congestiva)
  • Indivíduos assintomáticos clinicamente livres, mas com risco de OAC (> 65 anos; < 65 anos, mas classificados com alto risco cardiovascular de acordo com as diretrizes da European Society of Cardiology;1 > 50 anos com histórico familiar de OAC).

O ITB também pode ser mensurado com outros dispositivos, como o duplex ultrassom, o ultrassom em modo B associado à cor (p. ex., VScan®) ou, mesmo, o estetoscópio. No entanto, quando comparado com o escore de cálcio coronariano e a espessura médio-intimal da carótida (ao ultrassom vascular modo B), o ITB obtido pelo ultrassom Doppler contínuo é mais barato e pouco demorado.


Portanto, o ITB é uma das ferramentas mais simples, de baixo custo e de maior importância para o diagnóstico, triagem e segmento de doença arterial periférica, o que torna relevante saber usá-lo. A simplicidade do exame de ultrassom Doppler contínuo é, sem dúvida, o fator que mais contribui para a adoção desse dispositivo como ferramenta vascular preliminar à beira do leito.


Figura 1. Exemplo do aparelho – ultrassom Doppler.


Figura 2. Exemplo de manuseio – ultrassom Doppler.


Créditos das imagens: Dr. Ronald Flumignan.


 


Referência bibliográfica


  1. Aboyans V, Ricco JB, Bartelink MEL, Björck M, Brodmann M, Cohnert T et al. Editor’s Choice – 2017 ESC Guidelines on the Diagnosis and Treatment of Peripheral Arterial Diseases, in collaboration with the European Society for Vascular Surgery (ESVS). Eur J Vasc Endovasc Surg. 2018 Mar;55(3):305-68.

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