A Questão da Integralidade do Cuidado

A Questão da Integralidade do Cuidado

Por Dr. Gonzalo Vecina Neto – A intervenção no processo de saúde/doença depende de um complexo conjunto de conhecimentos e atividades. Compõem um desses conjuntos de conhecimentos a necessidade, expressada quando as pessoas devem ser atendidas de acordo com as suas condições clinicas, e a demanda, que ocorre quando as pessoas, por suas vontades, desejam ser atendidas.


A definição de necessidade é bastante complexa, porque ao longo do tempo o conceito migrou de uma definição técnica – apoiada pelo conhecimento epidemiológico – para uma definição apoiada também na decisão social de uma comunidade. Daí procedimentos estéticos ganharam escopo de necessidade, pela vontade da sociedade.


Outro componente fundamental dessa intervenção são as condições demográficas: o local onde as pessoas vivem, o espaço territorial e suas características. Assim, hoje, a população brasileira é urbana – 85% das pessoas vivem nas cidades –, teve, ao longo dos últimos 30 anos, uma importante queda de sua fecundidade e começou a envelhecer rapidamente. Estima-se que, por volta de 2025, cerca de 20% da população terá mais de 65 anos e estará próxima do crescimento vegetativo, ou seja, os nascimentos somente reporão as mortes.


O aumento da expectativa de vida é fruto de um complexo conjunto de fatores sociais, demográficos e epidemiológicos, os chamados determinantes das condições de saúde, e que não serão aqui analisados. Mas populações mais velhas têm um perfil de necessidades diferentes de outras. Obviamente, as condições socioeconômicas de uma sociedade são fundamentais como motores do processo saúde-doença. Populações mais estáveis do ponto de vista socioeconômico (PIB per capita, educação, acesso a saneamento básico, transporte, segurança, etc.), têm um perfil de necessidades em saúde diferente de outras sem esses acessos.


Em torno do conjunto de determinantes nos dias atuais está o acesso à tecnologia e ao conhecimento sobre ela. A tecnologia tem cada vez mais um impacto fundamental na saúde individual e coletiva. Para ter uma ideia, os norte-americanos tiveram, de 1995 a 2005, uma queda na mortalidade por doenças cardiovasculares de 350 para 155 a cada 100.000 habitantes, devido ao maior acesso a serviços de saúde preparados para atender infartos do miocárdio, ou seja, a redução do tempo porta-balão (tempo entre a chegada e o início das primeiras dores e o processo de intervenção e desobstrução das artérias).


Certamente, essa exposição à tecnologia tem um componente indesejável, que é a medicalização, ou seja, confundir o consumo de atos e produtos com saúde. Leigos e profissionais de saúde têm apresentado um comportamento cada vez mais medicalizante, tornando a Medicina mais cara e mais perigosa, pois atos desnecessários acarretam o risco de ocasionar doenças iatrogênicas.


O componente mais crítico deste momento é o perfil da mortalidade. No Brasil, em 2013, 40% das mortes foram ocasionadas por doenças cardiovasculares, 24% por cânceres e 15% em decorrência de violência. Isso indica que quase 80% da mortalidade ocorreu em virtude de enfermidades crônicas não infecciosas.


Nas doenças infecciosas, como dengue, malária, tuberculose, febre amarela, hanseníase, leishmaniose, Zika, Chikungunya e gripe, a mortalidade é decrescente devido às melhores condições socioeconômicas e pelo aparelhamento dos serviços de saúde que intervém a tempo de evitar a morte. Por isso, a preocupação volta-se com mais força para as doenças e agravos não transmissíveis (DANT).


Essa mudança no padrão da mortalidade exige um novo arranjo da oferta de serviços de saúde. Em vez de atender episódios de doenças, como ocorria com as diarreias e pneumonias, agora é necessário atender enfermidades que não têm cura, quando muito controle, como a hipertensão, o diabetes, e o câncer. O processo de atenção vertical deve se tornar horizontal.


O envelhecimento e, de certa forma, o decorrente novo padrão de mortalidade, exigem uma oferta diferente de serviços de saúde e, principalmente, uma abordagem diferente do processo saúde-doença: a integralidade da atenção.


O modelo tradicional de atender é o que utiliza a chamada prevenção de atenção secundária, ou seja, o diagnóstico precoce e a recuperação da saúde. No entanto, esse modelo realiza o atendimento com a doença já instalada e sua capacidade de intervenção necessita de uma carga cada vez maior de tecnologia, com consequências muito impactantes em termos de custos. E pior, deixa sequelas importantes quando se consegue resolver os problemas de saúde.


Por isso, grande parte do esforço atual tem sido no sentido de buscar um modelo de atenção integral à saúde, o qual deve ser composto de quatro conjuntos de intervenção:


  1. Prevenção primária: representa um conjunto de conhecimentos que devem promover e proteger a saúde. O mais complexo é o da promoção da saúde, pois se trata de educação sanitária, para o qual existe o desafio de transmitir o conhecimento e ter ressonância por parte de quem o recebe (que deverá ter um papel ativo a partir da posse desse conhecimento). A proteção da saúde agrega sempre outro ator. A proteção contra enfermidades imunopreveníveis exige vacinas e proteção no trabalho. Sempre deve haver o sujeito cidadão e o que disponibiliza a ação ou instrumento. O caso mais complexo é o da violência, que exige uma relação complexa do Estado, da sociedade e dos indivíduos.
  2. Prevenção secundária: é, na verdade, a base da ação dos serviços de saúde – a chamada medicina curativa. Diagnóstico precoce e recuperação ou tratamento da enfermidade. No diagnóstico precoce, ainda existem grandes lacunas, em particular no tratamento de hipertensão, diabetes e cânceres.
  3. Prevenção terciária: são as ações voltadas para tratar sequelas e causas de muitas enfermidades que desenvolvem incapacidades, as quais podem ser, inclusive, congênitas. O papel desse conjunto de ações é desenvolver capacidades adaptativas no indivíduo a fim de melhorar sua condição de vida. No Brasil, essa área é muito incipiente. Poucas são as ações do Estado voltadas para esta área. No Estado de São Paulo, recentemente, foi criada a rede de unidades Lucy Montoro, voltada para essas ações. Porém, a defasagem entre oferta e necessidade ainda é muito grande.
  4. Prevenção quaternária: tradicionalmente, somente as outras três prevenções são citadas, porém, nos últimos anos tem sido relevante falar da quaternária, que representa o conjunto de ações a serem desenvolvidas com o objetivo de reduzir o numero de eventos adversos ocasionados pelo ato de realizar a assistência à saúde e, particularmente, reduzir a mortalidade dos eventos adversos. Basicamente, aborda a redução das infecções hospitalares evitáveis, os erros de administração de medicamentos, a realização de atos cirúrgicos em membros trocados, a queda de pacientes de suas camas etc.

A integralidade da atenção exige uma nova postura do profissional de saúde. Exige equipes integradas de atenção e um projeto assistencial voltado para entregar valor ao paciente que, por sua vez, tem que se empoderar nesse novo modo de ser compreendido e atendido. Também exige que o setor de saúde se envolva com outros setores críticos para gerar bem-estar social e saúde, como por exemplo a educação, cultura, lazer, esporte, judiciário etc.


Vive-se um novo tempo, com uma carga de doenças e uma população diferentes. Tudo isso exige uma postura diferente do setor saúde e seu componente mais demandado e menos compreendido é a integralidade.


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