Quantas mulheres ainda morrerão por pré-eclâmpsia?

Quantas mulheres ainda morrerão por pré-eclâmpsia?

Por Dr. Nelson Sass – Todos os anos vários encontros científicos são organizados por entidades das mais diversas naturezas. Isso não é diferente para os especialistas em Obstetrícia e há que se destacar que em todos os eventos dificilmente a pré-eclâmpsia (PE) não é destacada. Para aqueles que não conseguem comparecer pessoalmente nesses encontros, existem inúmeras fontes na internet para informação e atualização. Nunca foi tão fácil acessar um guideline das diversas sociedades médicas e mesmo de organizações internacionais, como a OMS.


Alguém poderia supor que essa oferta generosa de informações resultasse em redução expressiva de indicadores de morbidade e mortalidade, no entanto, de forma intrigante, isso não ocorre. Por mais esforços que se faça para levar informação qualificada, existem barreiras difíceis de superar. Esse aspecto, comum entre várias áreas do conhecimento, é um enorme desafio que a Medicina Translacional enfrenta, ou seja, como fazer com que o melhor conhecimento possa ser aplicado rapidamente na prática clínica?


O título deste artigo tem justamente o objetivo de sensibilizar mais uma vez para a necessidade de reduzir o espaço entre conhecimento e prática no manejo clínico da PE, principalmente no pré-natal. Nossos indicadores permanecem estagnados, mas acreditamos que podemos reverter esse quadro com medidas simples e de baixo custo.


A ciência avançou bastante no entendimento da fisiopatologia da PE, mas muitas lacunas ainda permanecem, dificultando a proposição de medidas terapêuticas efetivas para seu controle. Por outro lado, estudos controlados têm fornecido informações preciosas para selecionar intervenções úteis, como o uso de aspirina na prevenção e o uso liberal de sulfato de magnésio (MgSO4) nos casos de PE grave.


A epidemiologia clínica têm fornecido informações preciosas que permitem identificar grupos de risco para o problema e adotar medidas mais efetivas possíveis para sua proteção. Metodologias científicas qualificadas nos protegem de tecnologias fúteis que implicam em elevação dos custos da assistência sem trazer benefícios efetivos, tanto do ponto de vista materno quanto perinatal. Desse modo, retornamos à questão das dificuldades de redução dos indicadores relacionados à PE, propondo uma linha de cuidados simples, mas que pode ser efetiva para ampliar a proteção materna e fetal.


O primeiro passo é muito simples: “pense em PE!”. Evidentemente, essa recomendação é dirigida aos colegas que cuidam da assistência obstétrica pré-natal. Esta simples atitude mental durante a primeira consulta da gestante vai resultar em um cuidado diferenciado e indutor das ações propostas a seguir.


Depois de “pensar em PE”, o passo seguinte é saber em que território se está trafegando, ou seja, quem é a paciente em relação aos seus riscos. Ainda não existem fórmulas milagrosas disponíveis para identificar e erradicar a PE, mas estudos epidemiológicos baseados em informações clínicas auxiliam na identificação de grupos de risco e podem apoiar um bom trabalho de monitoramento.


Quais são esses fatores de risco? Nada muito complicado, sem esquecer que a PE tem uma base imunológica e se destaca por ser uma síndrome inflamatória. Independente da quantificação do risco, vale a pena valorizar os seguintes:


  • Gestantes com mais de 40 anos
  • Primeira gravidez (primigestas)
  • Primeira gestação de um novo companheiro (primipaternidade)
  • História de PE na gestação anterior
  • Gestantes com antecedente familiar de PE (p. ex., mãe ou irmã)
  • Gestantes com IMC > 25
  • Gestantes portadoras de hipertensão arterial crônica
  • Diabete melito pré-existente nesta gestação
  • Gestações múltiplas
  • Síndrome anticorpos antifosfolípide (SAF)
  • Parceiro cuja companheira anterior teve PE
  • Uso de contraceptivo por barreira e escassa exposição ao esperma.

Em uma avaliação de 50 pacientes atendidas na Maternidade de Vila Nova Cachoeirinha com diagnóstico de PE, 90% tinham pelo menos um dos fatores anteriormente elencados.1 No entanto, a imensa maioria não recebeu nenhuma orientação ou prescrição para prevenção. A leitura do artigo de Ramos et al.2 é recomendada para melhor aprofundamento das questões acerca da PE.


O terceiro passo é compartilhar o tema com a paciente e seus familiares. Compartilhar, não aterrorizar. A ação visa à conscientização sobre um problema que pode ser grave, mas sempre aliada a uma abordagem positiva e construtiva. Não se deve esquecer que, apesar de sua gravidade, a PE tem uma incidência relativamente baixa, ou seja, cerca de 5 em 100 gestantes, podendo aumentar em grupos de risco. Essa etapa possibilitará à paciente reconhecer sinais e sintomas que possam sugerir a instalação da PE e procurar ajuda em tempo oportuno.


O quarto passo é um pouco mais de trabalhoso, pois exige a prescrição de aspirina para pacientes de risco. A recomendação é o uso diário, preferencialmente à noite, de dose única de 100 a 150 mg. Esta ação pode e deve ser iniciada o mais breve possível, sendo que não há nenhum risco associado naquelas que iniciam o medicamento antes de 12 semanas de gestação.


Existe certa controvérsia em utilizar aspirina para todas as gestantes primigestas, mas levando em conta as condições socioeducativas de nossa população, além das dificuldades de acesso aos serviços de saúde, acreditamos razoável essa opção. Ainda que isso seja ponderável, essa orientação está longe de ser utilizada plenamente. Os números preocupam: um estudo realizado entre pacientes primigestas assistidas com PE, na maternidade Vila Nova Cachoeirinha, verificou-se que 73,9% não receberam nenhuma intervenção para prevenção de PE.3 Vale destacar que o número necessário para tratar (NNT) é de 114 para reduzir um caso de PE. Além disso, quando uma gestante está recebendo a aspirina, provavelmente ela foi informada sobre o problema, e isso é bom.


O quinto passo é avaliar o quanto de cálcio a paciente ingere a cada dia. Boas evidências sugerem que existe maior risco de PE em gestantes com ingestão diária inferior a 1 g de cálcio. Essa deficiência pode ser corrigida por meio da dieta (derivados do leite e sardinha são ótimas opções) ou da suplementação diária de 0,5 a 1 g de cálcio.


O próximo passo é a observação cuidadosa do comportamento da pressão arterial e do peso da gestante nos períodos entre a 26ª e a 34ª semana da gestação, pois os quadros graves emergem nessa faixa de idade gestacional e muitas pacientes perdem a oportunidade de serem avaliadas em etapas iniciais do processo.


Se o ambulatório que irá receber as pacientes é muito concorrido e o aumento das consultas decorrentes dessa ação pode inviabilizar a agenda do profissional, a solução é simples: a paciente não precisa ser avaliada pelo profissional responsável por seu cuidado, ou seja, as ações podem ser realizadas pelas equipes de apoio, observando-se apenas a pesagem da paciente (ganhos superiores a 1 kg/semana merecem atenção) e a aferição da pressão arterial (elevação dos padrões até então registrados merecem atenção).


Implantar essa rotina pode dar um pouco de trabalho inicialmente, mas uma equipe motivada, adequadamente informada sobre a importância desse passo e treinada sobre como e quando agir nessas situações pode representar um auxílio precioso para a identificação precoce de PE e permitir um plano de ação seguro. Essa linha de cuidados visa a identificar a PE em sua fase inicial e com expressão clínica leve, ainda que não seja possível assegurar que todos os casos terão um curso progressivo. Lembre-se que existem casos graves com instalação súbita. Felizmente, essa não é a regra, mas perder a oportunidade de interceptação do processo em suas fases iniciais implica em riscos não desprezíveis para a mãe e o bebê.


Vale a pena relembrar os critérios diagnósticos para PE:


  • Detecção de hipertensão arterial (≥ 140 × 90 mmHg) após a 20ª semana
  • Proteinúria positiva [300 mg em urina de 24 h, ou relação proteinúria/creatininúria (RPC) ≥ 0,3, ou uma cruz em fita reagente avaliada em amostra de urina].

Na ausência de proteinúria, considerar dados laboratoriais:


  • Creatinina plasmática ≥ 1,1 mg/dl
  • Elevação de TGO): o dobro do normal
  • Plaquetopenia (plaquetas inferiores a 100.000 mm³).

Esses exames raramente estão disponíveis com a rapidez necessária em ambulatórios e, diante do dilema clínico, a paciente deve ser avaliada em um pronto-atendimento que possa agilizar esse processo.


Não subestimar sintomas clínicos como borração visual, cefaleia, tontura, falta de ar, dor epigástrica ou em hipocôndrio direito, náuseas, vômitos e convulsões. Esse conjunto reflete alto risco, e pacientes nessas condições devem ser imediatamente encaminhadas. O principal critério para definir PE grave no ambulatório é o valor isolado da pressão arterial (≥ 160 × 110 mmHg), independentemente da presença dos sintomas referidos.


O sétimo passo é o encaminhamento oportuno para um centro de referência da unidade hospitalar. Essa ação deve ocorrer após contato prévio com as equipes desses locais, fornecendo informações detalhadas do atendimento até esta etapa. É crucial assegurar a segurança da paciente durante o transporte até o local de referência.


Necessário também reforçar a recomendação para a internação dessas pacientes. Alguns talvez possam argumentar que a PE leve pode ser manejada com o uso de hipotensores como a metildopa, em seguimento ambulatorial. No entanto, essa opção expõe a paciente a prováveis riscos que poderiam ser interceptados, uma vez que a PE exibe evolução instável e imprevisível. Aliás, essa é uma opção muito frequente adotada na clínica e identificada durante a admissão de pacientes com PE grave no pronto-atendimento.


Estudos controlados holandeses que avaliaram os desfechos relacionados à conduta expectante versus conduta ativa em pacientes com PE leve identificaram benefícios maternos em termos de redução de desfechos adversos, incluindo redução de eclâmpsia.4,5 Portanto, a partir da identificação de “qualquer” PE, os passos seguintes serão dados no ambiente hospitalar. Para pacientes com diagnóstico de PE leve com 37 semanas ou mais, a indução do parto é altamente recomendada.4 Aquelas com idade gestacional entre 34 e 37 semanas, em princípio também serão elegíveis para indução5, mas em vista da prematuridade, essa decisão deve ser ponderada em termos de riscos maternos e neonatais, sendo recomendável que a decisão seja compartilhada com a equipe de neonatologia.


Para pacientes com PE grave, incluindo eclâmpsia, uma sistematização de ações é necessária para resguardar os interesses maternos e fetais. Destacam-se a seguir alguns passos essenciais:2


  • Garantir acesso venoso periférico para infusão de cristaloides e colher exames laboratoriais (hemograma com plaquetas, creatinina plasmática, TGO).
  • Sondagem vesical de demora e coleta de amostra de urina (avaliação de RPC)
  • Administrar sulfato de magnésio usando o seguinte esquema:
  • 4 g IV (8 ml de uma ampola de MgSO4 a 50% + 12 ml de água destilada; infundir a solução com velocidade de 1,0 ml/min)
  • A seguir, infusão IV contínua de 1 a 2 g de MgSO4
  • Administrar hipotensor de ação rápida, por exemplo, hidralazina 5 mg IV a cada 30 min até atingir níveis inferiores a 150 × 100 mmHg
  • Para idades gestacionais entre 24 e 34 semanas, administrar corticosteroides para a maturação pulmonar do feto
  • Avaliação das condições fetais usando os métodos disponíveis (ultrassonografia e Doppler)
  • Planejar o momento e tipo de parto.

Caminhamos para a finalização deste ensaio com o propósito de que este texto possa auxiliar na qualificação de nossos indicadores relativos mortalidade materna por PE. Ainda que alguns aspectos referentes à assistência hospitalar tenham sido brevemente discutidos, não há nenhuma outra possibilidade de redução dos problemas relacionados com a PE senão a qualificação e sensibilização do problema durante a assistência pré-natal e, curiosamente, a adoção de medidas muito simples, mas com grande potencial de qualificação da assistência. Oportunidades preciosas são perdidas no sentido de abreviar o curso de um problema muito grave e que pode comprometer a saúde materna de modo irreversível.


Procuramos falar sobre PE sempre que há oportunidade, seja em congressos científicos, nas atividades acadêmicas e em outros veículos de comunicação6, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. A Sociedade Internacional de Estudos sobre Hipertensão na Gravidez (ISSHP) definiu o dia 22 de maio para que em todos os anos e em todos os países sejam celebradas ações para a sensibilização do problema. Ainda estamos longe dessa data, mas o momento para mudar as rotinas para o enfrentamento da PE é agora.


Referências


  1. Araujo KCD, Fonseca NS, Silva TT, Portugal TF, Chalem E, Sass N, et al. Preeclampsia, we know little and are doing nothing. Pregnancy Hypertension. 2016;6(3):250-1.
  2. Ramos JGL, Sass N, Costa SHM. Rev Bras Ginecol Obstet. 2017;39:496-512.
  3. Silva TT, Araujo KCD, Fonseca NS, Portugal TF, Chalem E, Korkes HA, et al. Are we doing what we can to prevent preeclampsia? Pregnancy Hypertension. 2016;6(3):231-2.
  4. Koopmans CM, Bijlenga D, Groen H, et al; HYPITAT study group. Induction of labour versus expectant monitoring for gestationalhypertension or mild pre-eclampsia after 36 weeks’ gestation(HYPITAT): a multicentre, open-label randomized controlled trial. Lancet. 2009;374(9694):979-88.
  5. Broekhuijsen K, van Baaren GJ, van Pampus MG, et al; HYPITAT-II study group.Immediate delivery versus expectant monitoring for hypertensive disorders of pregnancy between 34 and 37 weeks of gestation (HYPITAT-II): an open-labelrandomized controlled trial. 2015; 385(9986):2492-501.
  6. Verdélio A. Brasil reduz mortalidade materna, mas continua longe do ideal, diz especialista. Brasília: Agência Brasil; 2017. [Acesso em 5 out 2018] Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-05/brasil-reduz-mortalidade-materna-mas-continua-longe-do-ideal-diz-especialista.

Colaborou: Prof. Dr. Henri Augusto Korkes, Professor do Departamento de Obstetrícia da Pontifícia Universidade Católica de Sorocaba, Médico Obstetra Preceptor da Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha, Membro da Comissão Nacional Especializada em Hipertensão Arterial na Gestação da Febrasgo.


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