Remodelagem autonômica e bases iônicas do eletrocardiograma do atleta

Remodelagem autonômica e bases iônicas do eletrocardiograma do atleta

Por Dr. Eduardo Barbosa – O eletrocardiograma do atleta mimetiza várias alterações encontradas em diversas cardiopatias fazendo com que, em um passado recente, tenham sido cometidas condutas equivocadas como a pressuposição da presença de cardiopatia e o afastamento de esportistas de suas atividades. Este artigo procura esclarecer os mecanismos pelos quais o exercício modifica a modulação autonômica sobre o coração e propor explicações, baseadas em mecanismos eletrofisiológicos, para o padrão eletrocardiográfico do atleta.


As bases iônicas da ativação elétrica do coração


O coração só exerce sua função de bomba se previamente sofrer uma despolarização elétrica. O registro da atividade elétrica transmembrana, ao longo do ciclo cardíaco, é denominado de potencial de ação da célula cardíaca. As modificações da voltagem elétrica intracelular são decorrentes da ativação e inativação de correntes iônicas, através de rearranjos moleculares de proteínas inseridas perpendicularmente na membrana celular e que formam os canais iônicos. A condutância iônica nestes canais é modulada por vários estímulos: físicos, elétricos e químicos. Entre os últimos está a ação da norepinefrina e da acetilcolina em receptores específicos localizados na superfície da membrana.


O acoplamento dos neuro-hormônios norepinefrina e acetilcolina com seus respectivos receptores de membrana beta-adrenérgicos e muscarínicos ativa uma proteína citoplasmática transdutora de sinal denominada de proteína G. Essa proteína, de estrutura similar a guanosina, apresenta pelo menos dois tipos: GS, ativada pelo receptor adrenérgico, e Gi, ativada pelo receptor colinérgico.


Cada tipo é composto por três subunidades: alfa, gama e beta. A ativação da proteína G em decorrência da estimulação do beta-1 receptor adrenérgico promove a ligação da subunidade alfa da proteína GS com a guanosina trifosfasto (GTP) e a dissocia das demais subunidades gama e beta. A partir da liberação da subunidade alfa acoplada com GTP será deflagrada uma sequência em cascata que envolve ativação da adenilciclase, aumento da produção de adenosina 3’,5’-monofosfato cíclico (AMPc), ativação da proteína quinase A e, como resultado final, aumento de condutância das correntes iônicas responsáveis pelas modificações do inotropismo, automatismo e refratariedade das células cardíacas.


O potencial de ação divide-se em cinco fases. A fase zero determina a velocidade de condução elétrica cardíaca e resulta primariamente de um súbito aumento na permeabilidade da membrana ao sódio. A abertura dos canais de sódio ocorre em resposta a estímulos elétricos, sendo que a rápida entrada desse íon na célula é responsável pela inversão da polaridade intracelular de –90 para +130 mV. Posterior à fase zero, a despolarização celular promove uma progressiva inativação dos canais de sódio e a abertura dos canais de cálcio.


A corrente de cálcio é de menor amplitude, mais lenta que a do sódio e somente se ativa quando o potencial intracelular atinge valores menos negativos (tipicamente a partir de –10 mV). É essa corrente lenta de cálcio a principal responsável pela formação do platô (fase 2) do potencial de ação. O aumento de cálcio livre no citoplasma parece ativar uma corrente transitória de efluxo de potássio denominada Ito. Essa corrente determina o entalhe repolarizante precoce do potencial de ação (fase 1) e, devido à distribuição não uniforme de seus canais no coração, parece ser responsável pela dispersão regional da amplitude da fase 2 no miocárdio ventricular, tanto em situações fisiológicas como não fisiológicas.


Além dos canais de cálcio e da corrente Ito, a despolarização da célula favorece também a abertura dos canais de potássio retificadores tardios que são os principais determinantes da repolarização da célula (fase 3 do potencial de ação). Seis outros tipos de canais de potássio já foram descritos, sendo os três mais importantes:


  1. Retificador anômalo (IK1), assim chamado por se comportar de maneira diferente daqueles canais inicialmente observados em axônios e que se abrem quando o potencial intracelular se torna próximo ou negativo ao potencial de reversão do potássio (ponto de equilíbrio do potássio que se situa em –90 mV). Este canal é o principal determinante do potencial de repouso do coração (fase 4).
  2. Canal sensível à acetilcolina (IKach). É o principal determinante das respostas colinérgicas observadas no coração. Sua condutância é mediada pela ligação da acetilcolina com o receptor muscarínico com posterior ativação da proteína Gi.
  3. Canal IKatp sensível a adenosina trifosfato (ATP). Este canal que se encontra normalmente fechado somente entra em ação na presença de baixos níveis de ATP. Supõe-se que sua abertura seja determinada pela diminuição da fosforilação oxidativa, o que o leva a funcionar em condições fisiológicas adversas, como na isquemia miocárdica.

Algumas regiões do coração, como as células dos nódulos sinusal e atrioventricular, dependem predominantemente da corrente lenta de cálcio para sua ativação. As propriedades eletrofisiológicas dessas células se caracterizam por: baixo potencial de repouso que se situa em torno de –65 mV (tornando os canais de sódio inativos e, portanto, indisponíveis para abertura), baixa amplitude do potencial de ação, velocidade máxima de despolarização (10 V/s) bem menor que a das células de Purkinje (500 a 1.000 V/s) e pela refratariedade prolongada.


A remodelagem da modulação autonômica do coração de atletas


O treinamento físico, em especial o continuado e de alto desempenho, produz várias e significativas modificações nos sistemas cardiovascular e nervoso autonômico. O condicionamento físico é tradicionalmente avaliado pela determinação da resposta cronotrópica ao exercício. As reduções da frequência cardíaca (FC) em repouso e da magnitude de sua variação durante o exercício têm sido interpretadas como produto de um efeito combinado sobre os sistemas simpático e parassimpático.


Estudos que analisaram a variabilidade da FC demonstraram que os componentes representados pelas contribuições simpática e parassimpática são modificados pelo treinamento físico. Os registros da variabilidade da FC sob ventilação controlada demonstraram uma maior potência espectral em repouso dos componentes sob influência do tônus parassimpático em indivíduos treinados em relação aos não treinados, traduzindo um aumento da atividade vagal nos atletas.


A remodelagem da modulação autonômica do coração secundária ao treinamento e que inclui a redução da atividade simpática e aumento da parassimpática tem como possíveis mecanismos:


  1. Dessensibilização dos receptores beta-adrenérgicos cardíacos ou uma redução de sua densidade consequente à estimulação frequente e sustentada, como a que ocorre no treinamento físico. Conforme atestam estudos que avaliam a integridade do sistema simpático através da cintilografia de captação com 123-metaiodobenzilguanidina, a redução da densidade desses receptores pode ser generalizada ou localizada preferencialmente na parede inferior do ventrículo esquerdo.
  2. A redução da pressão arterial no esforço que ocorre em consequência ao treinamento físico promove desvio do limiar de estimulação aferente dos mecanorreceptores arteriais e incremento do tônus parassimpático.


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