O grande desafio: conciliar o método clínico com a tecnologia médica

O grande desafio: conciliar o método clínico com a tecnologia médica

Por Dr. Celmo Celeno Porto – O grande desafio que temos diante de nós é a conciliação entre o método clínico e a tecnologia médica. Compreender que um não substitui o outro e que não há conflito entre ambos é o primeiro passo para aprender e exercer uma medicina de excelência. Dito de outra maneira: o grande desafio é saber reunir, no mesmo ato, o lado técnico da medicina e nossa condição humana. Disse “nossa” porque tanto o paciente como o médico não podem se esquecer de que, antes de tudo, somos humanos, eventualmente travestidos de doente – o paciente – e de profissional – o médico ou o aprendiz de médico, no caso do estudante de medicina – que cuida dele.


Não podemos esquecer que a medicina não é simplesmente um conjunto de técnicas e informações, mas o resultado de tradições e conhecimentos que abrangem o ser humano como um todo, incluindo suas relações com o contexto cultural e o meio ambiente. Talvez uma maneira de fixar esta verdade seja memorizar o seguinte axioma: ninguém nasce, ninguém vive, ninguém adoece, ninguém morre da mesma maneira em todos os lugares.


Nossa mente consegue, apoiando-se em elementos lógicos e intuitivos, armazenar um imenso saber para aplicá-lo na cura dos doentes. Contudo, não se iluda de que seja possível transformar tudo isso em fluxogramas, árvores de decisões, roteiros, consensos, diretrizes para tornar mais fácil nossa tarefa de identificar as doenças e cuidar dos pacientes. Contudo, devemos reconhecer que, embora tenham valor relativo, nem por isso devem ser desprezados.


Sem dúvida, a possibilidade de investigar os mais recônditos aspectos do corpo humano ou suas modificações anatômicas e funcionais, com detalhes e precisão nunca antes imaginados, fascinou os médicos a tal ponto que muitos pensaram – e alguns ainda pensam – que as máquinas poderiam fazer mais e melhor o que médicos fazem no contato direto com os pacientes.


Não se pode ignorar que isso pôs diante de nós um desafio que nos obriga a reavaliar o que devemos preservar e o que deve ser esquecido. Antes de tudo, deve-se ter consciência de que a medicina está vivendo um momento de transição. É necessário abrir os olhos e a mente e não se posicionar nos extremos deste embate: ou seja, ficar do lado dos que se apegam cegamente, por comodidade ou até por ignorância, à maneira tradicional de exercer a profissão médica, nem se associar aos que ficam deslumbrados com as últimas novidades. Ter mente aberta e espírito crítico para encontrar o ponto de equilíbrio consiste em adotar o novo, que se mostrar de fato necessário, sem medo de conservar o antigo, que esteja comprovado ser bom.


Em suma: podemos nos tornar cada vez mais eficientes – com auxílio das máquinas –, sem perder nossa sensibilidade, que é posta à prova no exame clínico do paciente.


Além disso, é fundamental nunca perder de vista que há um lado da medicina que não se enquadra nos limites – e nas limitações – dos aparelhos e das máquinas, por mais maravilhosos que sejam, pois neste lado encontra-se muita coisa que é indispensável para o trabalho como estudante e como futuro médico. De tudo, o que me parece mais importante é a relação médico-paciente, que pode ser considerada a essência de uma medicina de excelência. Neste lado da medicina é que se encontram as incontáveis maneiras de sentir, sofrer, interpretar o que se sente e de relatar o que se passa no íntimo de cada um; aí é que se encontram as mudanças impressas pelo contexto cultural na maneira de sentir-se doente, a participação dos fenômenos inconscientes e as interferências do meio ambiente. Desde logo, é preciso compreender que cuidar de pacientes com eficiência depende de todos estes fatores, porque a ação do médico não se esgota nos domínios da técnica e da tecnologia.


A melhor maneira de começar a enfrentar este desafio é considerá-lo apenas um pseudodesafio! Embora possa parecer paradoxal, há evidências, cada vez mais fortes, de que os métodos complementares, sejam os laboratoriais, sejam os de imagem, são mais bem aproveitados quando iluminados pelas informações obtidas no exame do paciente. O que parecia conflitante – o método clínico e os exames realizados com aparelhos e máquinas – está passando a ser uma associação cada vez mais estreita. Aqueles que acreditam neste conflito podem cometer grosseiros equívocos.


É sempre lembrada a atitude de um radiologista americano da década de 1950, que tinha sobre sua escrivaninha um estetoscópio guardado dentro de uma redoma de vidro, a dizer que aquele singelo instrumento era apenas uma peça histórica. Os anos se passaram e o que se tornou peça histórica foram os aparelhos de raios X da primeira metade do século passado. O estetoscópio continua insubstituível. Além de útil na ausculta do tórax e do abdome, ele se tornou o símbolo do contato entre o médico e o paciente.


É possível que, quando as máquinas de ressonância magnética estiverem se transformando em sucata, o significado simbólico do estetoscópio continue cada vez mais vivo na medicina de excelência.



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