O uso do álcool na gestação: uma grave ameaça à saúde humana

O uso do álcool na gestação: uma grave ameaça à saúde humana

Por Dr. Nelson Sass – O consumo de álcool é tolerado pela nossa sociedade e é associado com felicidade, descontração e comemoração. No entanto, a Organização Mundial da Saúde destaca o consumo abusivo de álcool como um problema de saúde mundial, pois trata-se de um fator de risco para diferentes doenças crônicas, comportamentos violentos, acidentes de trânsito e transtornos mentais, acarretando assim prejuízos sociais, como altos custos para o sistema de saúde em escala global1.


O problema no Brasil ainda persiste em escala preocupante. Um estudo transversal conduzido pela Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel)2 avaliou a tendência do consumo abusivo de álcool e identificou que, em 2006, a taxa era de 15,6% em 2006 e 16,4% em 2013, com tendência estacionária para toda a amostra e para ambos os sexos. Contudo, a tendência foi crescente entre os idosos e aqueles com 30-39 anos em ambos os sexos e para as mulheres da Região Sudeste.


Nesse estudo, o consumo abusivo foi definido como a ingestão de cinco ou mais doses para homens ou quatro ou mais doses para as mulheres em uma única ocasião pelo menos uma vez nos 30 dias anteriores à entrevista. Também foi assumido que uma dose de bebida alcoólica corresponderia a uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de cachaça, uísque ou qualquer outra bebida alcoólica destilada.


Não faltam informações epidemiológicas em nosso país para alertar as autoridades sanitárias sobre esse grave problema e que possam pautar políticas públicas consistentes para a redução de danos, seja por meio de ações de conscientização e mesmo de restrição ao consumo. Dentro desse universo complexo, porém, o uso de álcool durante a gestação e os impactos da exposição fetal carecem de maior apelo perante nossa sociedade. Mesmo entre profissionais de saúde, essa questão parece ser subestimada.


Por ser uma substância lipofílica, o álcool atravessa facilmente a placenta e rapidamente distribui-se na circulação fetal, atingindo concentrações proporcionais às do sangue materno. O prejuízo ao desenvolvimento fetal pode ocorrer indiretamente pelos efeitos placentários traduzidos pelo prejuízo no transporte de nutrientes e hipóxia, podendo determinar abortamento, prematuridade e morte fetal.


Seus efeitos afetam de forma global a biologia celular em desenvolvimento, levando à morte precoce ou ao comprometimento de sua função. Aqui devem ser destacados os impactos marcantes no sistema nervoso central com danos ao seu desenvolvimento anatômico e funcional, sendo descritas microcefalia, agenesia do corpo caloso, entre outros problemas. Essas alterações serão mais intensas quando a exposição ocorrer nas fases iniciais da vida fetal (primeiras cinco semanas). Além disso, mesmo que alterações anatômicas não sejam detectadas, limitações funcionais na rede neural poderão ser marcantes e definitivas3.


Esse conjunto de alterações denomina-se FASD, do inglês fetal alcohol spectrum disorders, e inclui alterações físicas e mentais, destacando-se problemas no aprendizado e na interação social como agressividade e comportamento sexual inadequado. Os defeitos congênitos e as alterações no neurodesenvolvimento são incluídas na SAF (Síndrome Alcoólica Fetal)3.


A definição diagnóstica da SAF pode ser tarefa complexa, pois nem todos os fetos expostos exibem o problema e as características podem ser discretas e passar despercebidas no período neonatal, ou ainda ser identificadas apenas ao longo do desenvolvimento da criança em face de problemas relacionais ou no aprendizado. No tocante ao exame de recém-nascidos, nem sempre as características fenotípicas são evidentes, exigindo a avaliação de algumas características faciais como a medida da fissura palpebral e a extensão da borda do lábio superior4.


Infelizmente, vários biomarcadores como ésteres etílicos dos ácidos graxos (FAEE), a glutamiltransferase, as aminotransferases e o volume corpuscular médio dos eritrócitos têm falhado para identificar com acurácia adequada o consumo de álcool na gestação e traçar uma política de seguimento de redução de danos nesses recém-nascidos5.


Visando contribuir com essa questão, estamos desenvolvendo um estudo em colaboração com a Universidade de North Western (Chicago) e o United States Drug Testing Laboratory (USDTL) para avaliar a capacidade do fosfatidiletanol (PEth) em traduzir o consumo de álcool na gestação. Por ser um metabólito específico, nossa hipótese é que possa ter associação positiva com o eventual consumo de álcool e talvez possa ser incorporado na prática clínica por meio de um teste colhido à semelhança da triagem neonatal (Teste do Pezinho).


Do ponto de vista clínico, a SAF pode exibir as seguintes características:


Anomalias faciais: fissura palpebral pequena, hipoplasia maxilar, nariz antevertido, implantação baixa da orelha, filtro labial liso e lábio superior fino



(Foto gentilmente cedida pela Dra. Maria dos Anjos Mesquita)


Características neonatais: baixo peso ao nascer, baixo peso em relação à estatura, dificuldade de crescimento após o nascimento


Alterações no sistema nervoso central: microcefalia, agenesia do corpo caloso, hipoplasia cerebelar.


Outros defeitos congênitos: anomalias cardíacas, esqueléticas, renais, oftalmológicas, fenda labial.


Anormalidades comportamentais: fraco desempenho escolar, dificuldade para controlar impulsos, percepção social inadequada.


Seria possível afirmar que a SAF ainda é um problema subdiagnosticado no Brasil. Mesmo entre profissionais de saúde, essas questões ainda não são suficientemente motivos de alerta. Para se ter uma noção do impacto do problema, segundo o CDC6, estima-se que, nos Estados Unidos e Europa Ocidental, 2$ a 5% de crianças em idade escolar seriam portadoras da SAF.


Um estudo realizado em uma maternidade pública do município de São Paulo (Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha)7 avaliou o consumo de álcool na gestação em 1.964 puérperas por meio de entrevistas e avaliou seus recém-nascidos. Os resultados identificaram uma prevalência de FASD de 38,69/1000 nascidos vivos e de 1,52/1000 nascidos para a SAF. Verificou-se ainda que 43,9% de toda a população avaliada consumiu álcool semanalmente antes da gravidez, sendo que 21,2% consumiram durante o primeiro trimestre. Aqui deve ser destacado que, na população estudada, 33,29% das mulheres informaram que consumiram álcool em algum momento da gestação.


Portanto, em vista da importância desse tema, concluímos este texto com alguns pontos que merecem atenção:


1 – O consumo de álcool de forma geral é estimulado pela mídia de propaganda como um comportamento social relacionado à felicidade e ao sucesso. Os alertas como “consumir com moderação” são tímidos e insuficientes diante das consequências do uso abusivo em todas as camadas sociais.


2 – Verificamos ao longo dos anos uma tendência de aumento do consumo na população feminina, sendo razoável supor que esse comportamento poderia aumentar a frequência de SAF.


3 – Não existem estudos que possam definir o consumo seguro de álcool na gestação. Portanto, as mulheres devem ser alertadas sobre essa questão e não devem consumir nenhuma dose de álcool durante esse período.


4 – A SAF está longe de ser efetivamente identificada em nosso meio. Essa entidade deve estar em mente de todos os profissionais de saúde. A possibilidade de biomarcadores acessíveis no período neonatal poderia ter importância no sentido de identificar crianças acometidas e definir uma política de seguimento diferenciado, de forma a reduzir os danos no seu desenvolvimento.


REFERÊNCIAS


  1. World Health Organization. Global status report on alcohol and health 2014. Geneva: World Health Organization; 2014. Disponível em: <http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_alcohol_report/en/>.
  2. Munhoz TN, Santos IS, Nunes BP, Mola CL, Silva ICM, Matijasevich A. Tendências de consumo abusivo de álcool nas capitais brasileiras entre os anos de 2006 a 2013: análise das informações do VIGITEL. Cad. Saúde Pública 2017; 33(7):e00104516.
  3. Mesquita MA. Efeitos do álcool no recém-nascido. Einstein. 2010. 8(3Pt1):368-75.
  4. Mesquita MA, Segre CM. Medida da fissura palpebral e da borda vermelha do lábio superior de recém-nascidos com idade gestacional de 25 a 43 semanas. Einstein. 2011. 9(3Pt1):283-7.
  5. Stewart SH, Law TL, Randall PK, Newman R. Phosphatidylethanol and Alcohol Consumption in Reproductive Age Women. Alcohol Clin Exp Res. 2010, 34(3): 488–492.
  6. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Alcohol and Public Health. Disponível em: <https://www.cdc.gov/alcohol/index.htm>. Acesso em: 30 out. 2017.
  7. Mesquita MA, Segre CM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo e bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev. Bras. Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1):63-77.

Colaborou Dra. Maria dos Anjos Mesquita, Médica do Hospital e Maternidade Cruz Azul de São Paulo e Médica do Hospital Municipal Maternidade Escola Dr. Mário de Moraes Altenfelder Silva (Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha).


 


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