Leucemias agudas e a Classificação da OMS | da clínica e morfologia aos oncogenes

Leucemias agudas e a Classificação da OMS | da clínica e morfologia aos oncogenes

Por Dr. Raimundo Antonio Gomes Oliveira – A classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS ou WHO, World Health Organization) surgiu inicialmente para as neoplasias linfoides com o intuito de refinar a classificação Revised European-American Lymphoma (REAL), publicada em 1994.


A segunda classificação da OMS — a primeira completa na prática — foi iniciada em 1997 por um comitê internacional de oncologistas e hematologistas reunido na Virginia, o Clinical Advisory Committee (CAC), mas só foi publicada em 1999, e abordava as neoplasias dos tecidos hematopoéticos (mieloide) e linfoide. Utilizava como base para classificação dos tecidos mieloides os critérios morfológicos da classificação FAB nas leucemias agudas (1976; 1987; 1991) e nas mielodisplasias (1982), acrescidos de dados citogenéticos e guidelines do grupo de estudo de policitemia vera de 1975 e doenças mieloproliferativas crônicas de 1997.


A mais recente classificação das neoplasias hematológicas, proposta pela OMS em 2016, não se trata de uma “nova” classificação, mas uma revisão da 4ª edição, que data de 2008, e agrega aspectos clínicos, morfológicos, imunofenotípicos e genético-moleculares de relevância para tratamento e prognóstico dos pacientes.


À bem da verdade, desde sua 3ª edição (de 2001), os critérios de classificação da OMS partem de dados clínicos e morfológicos, como triagem, para confirmar anormalidades genético-moleculares específicas. A “nova” classificação de 2016 explicita que as alterações genético-moleculares não apenas caracterizam entidades específicas, mas são essenciais para identificar produtos gênicos e suas vias de sinalização, como alvos terapêuticos.Pelos critérios atuais da OMS, as neoplasias hematológicas são divididas em:


  • Neoplasias mieloides: todas possuem em comum a maturação, portanto, independentemente de a maturação apresentar ou não displasia, são caracterizadas como crônicas
  • Neoplasias mieloproliferativas (NMP)
  • Mastocitoses
  • Neoplasias mieloides/linfoides com eosinofilia associada e alterações genético-moleculares em PDGFRA ou PDGFRB ou PGRF1 ou PCM1-JAK2
  • Síndromes mielodisplásicas/neoplasias mieloproliferativas (SMD/NMP)
  • Síndromes mielodisplásicas (SMD)
  • Neoplasias mieloides com predisposição germ line
  • Leucemias agudas: todas com perda da capacidade maturativa do clone neoplásico (bloqueio maturativo)
    • Mieloides
    • De linhagem ambígua ou de fenótipo misto, onde também estão inseridas as de células indiferenciadas
    • Leucemias/linfomas linfoblásticos B e leucemias/linfomas linfoblásticos T
  • Neoplasias linfoproliferativas crônicas (há maturação linfoide):
    • Neoplasias linfoides de células B maduras
    • Neoplasias linfoides de células T ou NK maduras.

De modo mais crítico, para as neoplasias mieloides, os aspectos morfológicos, citoquímicos e imunofenotípicos das células neoplásicas estabelecem a linhagem, o grau de maturação, bem como se há ou não componente displásico envolvido em amostras coletadas antes de qualquer tratamento quimioterápico prévio.


Para caracterizar o grau de maturação e determinar se trata-se ou não de uma neoplasia aguda, torna-se de extrema importância definir o percentual de blastos no sangue, na medula ou em outros tecidos envolvidos para classificação e diagnóstico diferencial. Neoplasias em que há aumento significativo de blastos (mais de 20% do total de células nucleadas) desde o início da doença são de caráter agudo, por exemplo. As neoplasias mieloides cujo percentual de blastos ao diagnóstico não perfaz esse critério, ou seja, não ultrapassa 20% do total de células, mas a médio ou longo prazo evolui, caracteriza sua progressão de um quadro crônico (neoplasia mieloide crônica) para uma neoplasia aguda em fase blástica (para as neoplasias mieloproliferativas) ou de uma leucemia mieloide aguda (LMA) secundária a uma mielodisplasia (para as síndromes mielodisplásicas), mas não leucemia aguda “de novo” ou primária.


Em alguns casos, principalmente quando há comprovação de alterações citogenéticas específicas, como t(8;21)(q22;q22.1 ), inv(16)(p13.1 q22) ou t(16;16)(p13.1 ;q22), pode-se aceitar o diagnóstico de LMA mesmo se a contagem de blastos for inferior a 20%.


Por outro lado, se estabelecido, desde o início, o critério de uma leucemia aguda “de novo” (aquelas em que a porcentagem de blastos ultrapassa 20% do total de células em medula óssea ou sangue), é imperativo avaliar os aspectos genético-moleculares para sua estratificação e diagnóstico diferencial com a finalidade de tratamento e prognóstico, bem como para monitorar o tratamento e avaliar a progressão da neoplasia (follow-up) por meio da pesquisa de doença residual mínima.


Sob o aspecto genético-molecular, também é importante ressaltar que nem todas as neoplasias hematológicas estão associadas a anormalidades cromossômicas (citogenéticas) detectáveis pelo cariótipo, mas a mutações gênicas com ou sem alterações citogenéticas.


Aspectos fisiopatológicos complexos e as leucemias agudas


As leucemias mieloides agudas correspondem a um grupo bastante heterogêneo de doenças clonais, caracterizado pelo envolvimento de uma ou mais linhagens mieloides, que sofrem bloqueio maturativo total ou parcial na medula óssea, mas que pode apresentar características clínicas, morfológicas e genético-moleculares bastante distintas. Isso ocorre de modo análogo nas leucemias linfoides agudas, cuja alteração ocorre na linhagem linfoide.


A classificação OMS 2016 tem o desafio de incorporar os novos conhecimentos genético-moleculares com seus respectivos aspectos prognósticos, mas, também, definir entidades fisiopatológicas de forma mais homogênea possível, respeitando os aspectos clínicos, morfológicos e/ou imunofenotípicos. Por exemplo, muitos pacientes com leucemias mieloides agudas desenvolvidas após tratamento com agentes alquilantes e inibidores da topoisomerase II, apresentando alterações citogenéticas recorrentes [exceção feita para inv(16)(p13.1q22), t(16;16)(p13.1 ;q22) e PMLRARA], possuem piores prognóstico e evolução clínica quando comparados às mesmas alterações citogenéticas em pacientes com LMA “de novo” (aquelas não relacionadas a terapias prévias). Desse modo, os casos de neoplasias relacionadas à terapia devem sempre ser distintos e qualquer anormalidade genética específica também deve ser listada como parte do diagnóstico.Tudo isso justifica separar o grupo de LMA secundárias a terapias das LMA primárias. Outro aspecto relevante ao diagnóstico diferencial são as alterações displásicas associadas. Nesse aspecto, casos com > 20% de blastos em pacientes sem tratamento quimioterápico prévio, associados a alterações específicas de cariótipo – cariótipo complexo (mais de 3 alterações); alterações não balanceadas, como-7/del (7q), del (5q)/ t (5q), I (17q)/ t (17p), -13/ del (13q), del (11q), del (12p)/ t (12p), Idic (X)/ q13); e alterações balanceadas, como t (11;16), t (3;21), t (1;3), t (2;11), t (5;12), t (5;7), t (5;17), t (5;10) e t (3;5) –, devem ser classificados como LMA associadas a alterações mielodisplásicas.


Classificação OMS para as leucemias agudas


Para a OMS de 2016, as LMA e as neoplasias relacionadas são classificadas em:


  • LMA com anormalidades genéticas recorrentes:
    • LMA com t(8;21) (q22;q22.1), RUNX1-RUNX1T1 (AML1-ETO)
    • LMA com inv(16) (p13.1q22) or t(16;16) (p13.1;q22), CBFβ-MYH11;
    • Leucemia promielocítica aguda (LPA) com PML-RARα
    • LMA com t(9;11)(p21.3;q23.3), MLLT3-KMT2A
    • LMA com t(6;9)(p23;q34.1), DEK-NUP214
    • LMA com inv(3) (q21.3q26.2) ou t(3;3) (q21.3;q26.2), GATA2, MECOM
    • LMA (megacarioblástica) com t(1;22) (p13.3;q13.3), RBM15-MKL1
    • Entidade provisória: LMA com BCR-ABL1+e LMA com mutação RUNX1
    • LMA com mutação NPM1
    • LMA com mutação bialélica em CEBPA
  • LMA relacionadas a alterações mielodisplásicas
  • Neoplasias mieloides associadas a terapias
  • LMA não anteriormente especificadas, classificadas morfologicamente em:
    • LMA minimamente diferenciada (equivalente à LMA M0 da FAB)
    • LMA sem maturação (equivalente à LMA M1 da FAB)
    • LMA com maturação (equivalente à LMA M2 da FAB)
    • Leucemia mielomonocítica aguda (equivalente à LMA M4 da FAB)
    • Leucemia monoblástica/monocitica aguda (equivalente à LMA M5 da FAB)
    • Leucemia eritroide pura (equivalente à LMA M6 pura da FAB, sendo excluída a antiga LMA M6 mieloide/eritroide)
    • Leucemia mega carioblástica aguda (equivalente à LMA M7 da FAB)
    • Leucemia basofílica aguda
    • Panmielose aguda com mielofibrose.

A subdivisão morfológica não tem qualquer relevância para as leucemias linfoides agudas (LLA), uma vez que a distinção entre os subtipos morfológicos L1 ou L2 não prediz o imunofenótipo, muito menos suas alterações moleculares; exceção feita ao raro subtipo LLA L3 (que, desde 2008, é classificado como uma doença linfoproliferativa crônica).


A OMS de 2016 divide as leucemias linfoides agudas/linfomas linfoblásticos em:


  • Leucemia/linfoma linfoblástico de células B:
    • Leucemia/linfoma linfoblástico B não caracterizada por outros critérios
    • Leucemia/linfoma linfoblástico B com anormalidades genéticas recorrentes:
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(9;22)(q34.1;q11.2), BCR-ABL1+
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(v;11q23.3), rearranjo KMT2A
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(12;21)(p13.2;q22.1), ETV6-RUNX1
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com hiperdiploidia
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com hipodiploidia
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(5;14)(q31.1;q32.3), IL3-IGH
      • Leucemia/linfoma linfoblástico B com t(1;19)(q23;p13.3), TCF3-PBX1
      • Entidade provisória: Leucemia/linfoma linfoblástico B “BCR-ABL1–like”; Leucemia/linfoma linfoblástico B com iAMP21
    • Leucemia /linfoma linfoblástico de células T:
      • Entidade provisória: leucemia/linfoma linfoblástico de células T precoces (early T cells); leucemia/linfoma linfoblástico de células NK.

Para as leucemias agudas de linhagem ambígua ou fenótipo misto, a classificação OMS inclui as entidades:


  • Leucemia aguda indiferenciada (AUL)
  • Leucemia aguda com fenótipo misto ou ambíguo com t(9;22) (q34.1;q11.2), BCR/ABL1+
  • Leucemia aguda com fenótipo misto com t(v;11q23.3), rearranjo KMT2A
  • Leucemia aguda com fenótipo misto B‑mieloide não caracterizada por outros critérios
  • Leucemia aguda com fenótipo misto T‑mieloide não caracterizada por outros critérios.

Abordagem prática para diagnóstico e classificação das leucemias agudas


Sob o aspecto prático, o diagnóstico das leucemias agudas segue a mesma sequência das demais neoplasias hematológicas: avaliação clínica e exame físico do paciente; avaliação morfológica do sangue e do aspirado de medula óssea (ou biopsia para os casos de medula hipocelular com aspirado não representativo), quando são determinados os aspectos clínicos relevantes, além de definir a porcentagem de blastos e se há ou não displasia associada, sem relação com o tratamento prévio, ou doença neoplásica hematológica ou não preexistente; imunofenotipagem com a missão de definir a linhagem do blasto (mieloide, linfoide B ou T ou de linhagem ambígua); e, por fim, determinação dos oncogenes envolvidos por cariótipo, FISH ou biologia molecular para cada subtipo encontrado.


Vale ressaltar que apesar de não possuir valor preditivo para prognóstico e tratamento, a avaliação morfológica ainda é indispensável para conceituar uma leucemia aguda, cujo valor de corte de 20% de blastos é feito pela determinação da porcentagem destes blastos e das células denominadas bastos“ equivalentes” (os promielócitos neoplásicos e promonócitos) pela morfologia na medula óssea, mas não pela percentagem de células CD34+ obtidas pela imunofenotipagem.


A classificação morfológica, incluindo provas citoquímicas da peroxidase (PEROXI) e esterases inespecíficas (ANAE), também pode ser útil como ferramenta de triagem da imunofenotipagem (técnica inquestionável para definir a linhagem, a sublinhagem, a fase maturativa e a expressão aberrante de antígenos). A morfologia associada à imunofenotipagem pode auxiliar o direcionamento das pesquisas moleculares linhagem-específicas, bem como os casos sem alterações citogenético-moleculares recorrentes e preditivas de prognóstico e aqueles não associados a alterações displásicas ou secundárias a tratamento ou de evolução secundária a outras neoplasias hematológicas. Para esses casos não enquadrados em nenhum dos critérios anteriormente especificados, a classificação morfológica ainda é utilizada para as leucemias mieloides agudas.


Dados clínicos e morfológicos relevantes


Há implicações prognósticas o fato de um paciente clinicamente possuir uma leucemia aguda primária (“de novo”) ou secundária (a uma NMP, SMD, SMD/NMP ou tratamentos de outras neoplasias).


Sob o aspecto morfológico, há subtipos de LMA associados a alterações mielodisplásicas também com consequências no prognóstico; além disso, algumas alterações citogenético/moleculares recorrentes possuem associações morfológicas relativamente específicas com alguns subtipos FAB de LMA, o que pode servir para direcionar uma determinada pesquisa molecular.


Alterações genético-moleculares recorrentes associadas aos subtipos FAB para direcionamento das pesquisas moleculares


Para as leucemias mieloides agudas, existem associações entre:


  • LMA M3 ou M3V com a t(15;17), oncogene PML RaRα (Figura 1)
  • LMA M2 com a t(8;21), oncogene RUNX1-RUNX1T1
  • LMA M4eosi com a t(16;16) ou inv(16), oncogene CBFβ-MYH11(Figura 2)
  • LMA M5 e M4 com a t(9;11), oncogene MLLT3-KMT2A
  • LMA M7 com a t(1;22)(p13.3;q13.3), oncogene RBM15-MKL1.


Figura 1 – Promielócitos hipogranulares em caso clínico compatível com o subtipo morfológico de leucemia promielocítica aguda, variante hipogranular (LMA M3v), associado ao oncogene PML RaRα.



Figura 2 – Morfologia compatível com leucemia mielomonocítica aguda, variante eosinofílica (LMA M4Veosi), associada ao oncogene CBFβ-MYH11.


Considerações finais


As leucemias agudas, outrora definidas e classificadas por meio de critérios morfológicos isolados, são hoje descritas como entidades clínico-biológicas distintas, em que devem ser agregados aspectos clínicos, morfológico-imunofenotípicos e genético-moleculares com a finalidade de separá-las em unidades específicas para fins de tratamento.


As entidades não classificáveis por outros critérios (hoje em torno de 25 a 30% dos casos) tendem cada vez mais a diminuírem em proporção, ao passo que os conhecimentos fisiopatológicos associados aos oncogenes são adquiridos.


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