Enxaqueca pode aumentar risco de doenças cardiovasculares

A enxaqueca incide em aproximadamente 15% dos brasileiros entre 20 e 40 anos de idade. Deste universo, 81% são mulheres e 59,7% são homens, segundo dados da Sociedade Brasileira de Cefaleia (SBCe). Recente estudo demonstrou que esta doença aumenta o risco de os pacientes desenvolverem doenças cardiovasculares, tais como infarto e acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico. O risco acaba se tornando duas vezes maior quando há a combinação de tabaco e o uso de anticoncepcionais. Para abordar esta relação, conversamos com o Dr. Luiz Henrique Dourado, neurologista do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo.


O que representa para a classe médica a descoberta deste novo estudo, em especial para neurologistas e cardiologistas?

Já existem diversos estudos relacionando cefaleia com eventos cardiovasculares, em especial o acidente vascular cerebral (AVC). A novidade deste estudo publicado no BMJ sobre “Migrânea e risco de doenças cardiovasculares em mulheres” (the bmj | BMJ 2016;353:i2610 | doi: 10.1136/bmj.i2610) está em evidenciar que mulheres migranosas têm 50% a mais de chance de sofrer algum evento vascular, desde angina, infarto do miocárdio ou até mesmo AVC. No entanto, foge do escopo do estudo se a aplicação de medidas de prevenção ou o tratamento da migrânea implicariam na redução deste risco. Inclino-me a pensar que sim, uma vez que, para os pacientes migranosos, costumo prescrever atividade física, dieta balanceada, cessação do tabagismo e medidas para contrabalançar o estresse da vida diária. São, dentre outras, as mesmas práticas aplicáveis à prevenção de doenças cardiovasculares. O próprio estudo ressalta que ainda não é possível indicar quais mecanismos podem determinar isso e se são apenas aumento de substâncias pró-inflamatórias, marcadores genéticos comuns ou suscetibilidade trombogênica. Trata-se de mais um elo que une neurologistas e cardiologistas em torno de doenças de origem cardiovascular.


Segundo sua prática clínica, esta relação já era evidenciada?

Posso dizer que sim. Quando avalio o histórico dos pacientes que sofreram um AVC, é muito comum que haja os mesmos fatores de risco para doenças cardiovasculares. Dentre eles, hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes e dislipidemia. O mesmo vale para o tabagismo. E quando o caso envolve uma mulher jovem, a associação de uso de anticoncepcionais e tabagismo também é frequente.


No que concerne sobre o uso do tabaco e de anticoncepcionais, como explicar esta relação com a enxaqueca?

O tabagismo é um fator que promove a inflamação dos vasos sanguíneos. Uma maior atividade de fatores pró-inflamatórios tem caráter trombogênico, aumentando o risco de eventos vasculares isquêmicos, dentre eles o AVC. O uso de anticoncepcionais hormonais combinados – aqueles que contêm estrógeno em sua composição – também facilita a formação de trombos. O simples uso desses tipos de anticoncepcionais já aumenta o risco relativo em duas vezes de eventos isquêmicos cerebrais. De forma absoluta, ainda é um valor pequeno, mas que requer cuidado e avaliação caso a caso, em especial para quem já possui o diagnóstico de alguma doença que cause estados de hipercoagulabilidade, histórico de doenças isquêmicas na família ou alguns hábitos que são fatores de risco para doenças cardiovasculares (dentre eles, o tabagismo é o de maior evidência).


Sobre a possibilidade de esses dois elementos se relacionarem com enxaqueca, as evidências, até o momento, não nos permitem generalizar. O consumo de tabaco e, às vezes, até mesmo sua abstinência, em algum momento, pode servir como gatilho para episódios de enxaqueca. Essas crises, tanto com relação à quantidade quanto à intensidade, estão diretamente relacionadas com o número de cigarros consumidos. O que deve definir como meta inicial para todo paciente com enxaqueca é diminuir o consumo de tabaco e, como meta final, cessar o tabagismo.


O uso de estrógeno (em pílulas para anticoncepção ou suplementos) pode até fazer parte do arcabouço para o tratamento de algumas cefaleias em que a flutuação hormonal, decorrente do ciclo reprodutivo feminino, funciona como fator desencadeador. Eles não devem ser usados para pacientes com enxaqueca com aura, pois, nestes casos, podem até dobrar o risco de eventos vasculares cerebrais. Contudo, o estudo mencionado não diferenciou essas duas formas de enxaqueca para incluir as pacientes. No entanto, considerando que aproximadamente 80% dos casos de enxaqueca não possuem aura, talvez seja preciso rever essa relação de aumento isquêmico apenas para os casos enxaquecosos com aura.


Tendo em vista que as doenças cardiovasculares também têm alta prevalência na população geral, quais seriam as medidas preventivas quando do início dos sintomas da enxaqueca?

O quadro enxaquecoso costuma ter melhor definição na adolescência, idade que não costuma estar relacionado com outras patologias. Caso não seja identificada na consulta clínica alguma outra evidência de comorbidades, acredito não ser necessária uma investigação ampla; desde que seja realizada uma boa consulta, na qual sejam estabelecidos o início, a forma, a evolução, os sintomas associados, os sinais de alerta, os antecedentes pessoais e familiares e um exame físico detalhado (inclusive com aferição da pressão arterial), dentre outros testes. Devemos ter maior cuidado com o surgimento de novo sintoma ou doença associada, piora significativa ou mudança do padrão enxaquecoso. Presentes tais achados, devemos ampliar a investigação com exames mais específicos, sejam eles de imagem, eletrofisiológicos ou de sangue.


Pesquisas também indicam que o excesso de medicação analgésica, sem recomendação médica, que ultrapassa a quantia de três comprimidos por semana, é considerado o maior fator de risco para a progressão da enxaqueca, por intensificar e mudar as características da dor. Como os neurologistas podem atuar neste sentido junto aos pacientes?

A prática de se automedicar é muito prevalente. E se aplica também para os pacientes com enxaqueca. De fato, o uso desenfreado de analgésicos pode alterar a fisiopatologia dos mecanismos dolorosos, fazendo mudar as características com que a cefaleia se apresenta e tornar o seu controle mais difícil. Raramente alguém irá procurar um médico quando consegue controlar sua dor de forma eficaz com um remédio encontrado em qualquer esquina. Mas quando o uso de alguma medicação se tornar cada vez mais necessário, ou caso seja preciso trocá-la porque já não faz mais efeito, aí, sim, uma consulta com um neurologista não deve ser postergada. Primeiro: uma causa secundária àquela enxaqueca pode estar começando a se mostrar sintomática; segundo: deve-se tratar a cefaleia de forma eficaz e com toda a orientação necessária para que não se caia em armadilhas de comportamento ou terapias equivocadas. 


Que outras medidas preventivas este profissional pode orientar seus pacientes?

Acredito que o papel do neurologista é auxiliar o paciente a conhecer melhor a sua enxaqueca. Não me refiro à doença enxaqueca, mas, sim, ao conjunto de sinais e sintomas que acompanha cada um. É necessário que tenhamos rigor científico para fazer um diagnóstico, mas é completamente diferente afirmar que todas as enxaquecas são iguais e que possuem tratamentos semelhantes. Não são. Gosto de dizer para meus pacientes o aforismo grego: “conhece-te a ti mesmo” e acrescento: “e me ajude a conhecê-lo também”. Dessa forma, as informações que chegam até o médico serão mais fidedignas, os gatilhos e fatores de melhora serão mais facilmente identificados e os efeitos do tratamento serão reconhecidos de modo mais adequado. Tudo isso fará com que o neurologista possa oferecer o melhor tratamento e privilegiar algum conjunto de orientações. Existem algumas dicas gerais que valem para quase todos os casos, tais como realizar alguma atividade física regular, perder peso (se for o caso), parar de fumar, seguir dieta balanceada, etc. Mas não é possível uma receita com o que pode ou não pode. Isso varia de pessoa para pessoa.

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