O Pensamento Hipocrático

O Pensamento Hipocrático

Embora a doutrina hipocrática tenha resistido ao tempo, a vida do seu autor ainda continua pouco conhecida. Sabe-se que nasceu na pequena ilha de Cós, 400 anos antes de Cristo, tendo estudado em Atenas e praticado a Medicina na Trácia, em Crotona, em Perinto, em Salamina e na Macedônia, morrendo com a idade de 104 ou 107 anos na Tessália.


O Corpus Hipocraticum, reunido por estudiosos da Escola de Alexandria nos idos do século 2, ainda que mostrando pontos contraditórios, traz, no entanto, um conjunto de ideias que representa o chamado Pensamento Hipocrático.


A base fundamental do seu sistema foi exatamente afastar da Medicina as interpretações teológicas e as fantasiosas encenações da magia. “Proponho tratar a enfermidade chamada sagrada – a epilepsia. Em minha opinião, não é mais sagrada que outras doenças, senão que obedece a uma causa natural, e sua suposta origem divina está radicada na ignorância dos homens e no assombro que produz peculiar caráter.”1


Para o Gênio de Cós, a doença nada mais era que simplesmente um processo natural, recebendo, inclusive, influência dos fatores externos, como clima, ambiente, dieta e gênero de vida. “O organismo tem seu próprio meio de recuperar-se; a saúde é o resultado da harmonia e simpatia mútua entre todos os humores; o homem saudável é aquele que possui um estado mental e físico em perfeito equilíbrio.” 1


Conduzia ele a Medicina dentro de um alto conteúdo ético. O diagnóstico deixava de ser uma inspiração divina para constituir um juízo sereno e um processo lógico, dependendo da observação cuidadosa dos sinais e sintomas. Era a morte da Medicina mágica e o nascimento da Medicina clínica.


Hipócrates fez com que a atenção do médico se voltasse exclusivamente para o doente, e não para os deuses, abandonando as teorias religiosas e alguns conceitos filosóficos. Fez ver a necessidade e a utilidade da experimentação curativa, e passou a intervir nas fases mais precoces da enfermidade, evitando sua evolução. Em Epidemias descreveu com rigoroso caráter científico o desenrolar das doenças; em Ares, Águas e Lugares, criou o primeiro tratado de saúde pública e geografia médica; em Histórias Clínicas, trouxe à tona o valor do exame minucioso e a razão de esse ato ser judicioso, solene e meditado; em Prognóstico, além de descrever a alteração do pulso e da temperatura como elementos importantes em determinados processos patológicos, relatou com a mais alta precisão os ruídos auscultados nos derrames pleurais hidrogasosos, conhecidos até hoje como sucção hipocrática. Escreveu ainda Aforismos, Regime das Doenças Agudas, Articulações e Fraturas, Feridas da Cabeça, Medicina Antiga, entre outros.


Mas foi em Juramento que a doutrina hipocrática logrou maior relevo e maior transcendência. Mesmo não se assentando em fundamentos jurídicos, seu postulado ético-moral permanece sendo a viga mestra de todo o conteúdo dogmático que conduz a Medicina, nos dias de hoje, como sacerdócio-ciência, merecedor do aplauso e da consagração que a tecnologia moderna não conseguiu destruir.


E é neste instante de maior evolução e de grandes conquistas, em que a Ética distancia-se cada vez mais desses extraordinários resultados, que se faz sentir a imperiosa interferência do Pensamento Hipocrático, pela irradiação de seu sentimento moralizador, ascético e purificador, sintetizado na sua lapidar sentença: “Conservarei puras minha vida e minha Arte.”1


O pensamento do Mestre de Cós fundamenta-se nos seguintes pontos: no agradecimento aos mestres pelos ensinamentos recebidos e por constituir com eles e os seus uma família intelectual; na moralidade e em uma vida profissional irretocável; no respeito ao segredo médico; no benefício incondicional ao paciente, como polo principal do exercício médico; na concepção da Medicina como uma arte da observação cuidadosa e como ciência da natureza; na libertação da Medicina das mãos dos bruxos e sacerdotes.


O Corpus Hipocraticum, em sua essência, é de um admirável e comovente humanitarismo, de compaixão e de afetividade. Mesmo mais modernamente, nos famosos acordos internacionais, tais como o Código de Nuremberg, a Declaração de Helsinki, a Declaração de Genebra e o Código Internacional de Ética Médica, ou os Códigos nacionais aceitos pelos diversos países, paira a flama do espírito hipocrático.


O pensamento do venerável Mestre de Cós, sem quaisquer dúvidas, emprestou tanta contribuição à Medicina que fez dela a mais notável e a mais meritória de todas as profissões, a ponto de fazer valer-lhe a reconhecida e justa gratidão de toda a Humanidade.


Referência


1 – Cairus HF, Ribeiro Jr. WA. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.


 


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