Eletrocardiograma e coronariopatia aguda

Eletrocardiograma e coronariopatia aguda

Como já se sabe, o eletrocardiograma (ECG) é ferramenta essencial na avaliação dos pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA). Realizá-lo em até 10 minutos da chegada ao pronto-atendimento é pragmático, e o supradesnível de ST maior que 1 mm em derivações contíguas pressupõe oclusão completa de artéria coronária e necessidade de reperfusão miocárdica de emergência. No entanto, é oportuno que haja discussão mais aprofundada, que exponha dúvidas, encare questões práticas e armadilhas, ou pitfalls, para incorporar o sinônimo em inglês.


Definir SCA com supra de ST depende exclusivamente de um quadro clínico compatível com isquemia miocárdica e de um ECG característico. É o que basta na fase inicial do atendimento, dispensando resultados de exames como troponina ou ecocardiograma. O desafio que prontamente se segue ao diagnóstico é escolher o tratamento mais adequado e disponível ao caso, se fibrinolise, angioplastia primária ou estratégia fármaco invasiva.


A primeira armadilha do emergencista está na avaliação inicial do ECG. Inúmeras condições podem trazer dificuldade, inclusive ao apresentar padrões não isquêmicos de supra de ST. Repolarização precoce, pericardite, síndrome de Brugada, hipercalemia e hipertrofia ventricular esquerda são alguns desses exemplos. A morfologia e a distribuição eletrocardiográfica do supra de ST, aliadas ao quadro clínico, fazem toda a diferença no momento de decidir se o supradesnível representa ou não infarto agudo do miocárdio.


O bloqueio de ramo esquerdo (BRE) configura outra situação em que a isquemia miocárdica é de difícil avaliação. Os critérios de Sgarbossa ajudam a definir quando o supra de ST é superposto a um BRE. No entanto, a questão é complexa, ao ponto de as diretrizes em Cardiologia respaldarem o diagnóstico de SCA com supra de ST quando nos deparamos com um paciente com BRE novo (ou presumidamente novo) e quadro clínico condizente.


Além disso, ocorrem os casos de supradesnível de ST compatíveis com isquemia miocárdica que não se traduzem por oclusão aterotrombótica de artéria coronária, a exemplo da síndrome de Takotsubo e da angina variante de Prinzmetal.


É menos controverso discutir a distribuição do supra de ST para predizer a região miocárdica e a coronária acometida pelo infarto. A região anterior é irrigada pela coronária descendente anterior e representada pelas derivações precordiais, de V1 a V6; já a região lateral, pelas derivações V4 a V6 (chamadas de anterolaterais) e DI e aVL (região lateral alta). Um supra de ST lateral isolado pode decorrer de uma oclusão de ramos diagonais da artéria descendente anterior, de ramos marginais da artéria circunflexa ou, ainda, do ramo intermédio. São mistérios da ampla variação anatômica de irrigação coronariana.


Derivações DII, DIII e aVF representam a região inferior. Padrões eletrocardiográficos permitem uma boa estimativa de se concluir qual das coronárias esteja ocluída, se direita ou circunflexa. Uma dica: supradesnível de ST inferior concomitante a supra em DI é bom preditor de oclusão de coronária circunflexa.


Derivações direitas, importantes na suspeita de infarto de ventrículo direito (VD), são as equivalentes contralaterais de V1 a V6, locadas no hemitórax direito, sendo V4R a mais fidedigna para predizer infarto de VD. Derivações dorsais, V7, V8 e V9, devem ser feitas se houver infra de ST em derivações precordiais (V1 a V3), o que possivelmente equivale a um supra de ST em V7 a V9.


O ECG pode ainda ter diferentes padrões de isquemia além do supra de ST, como infradesníveis de ST e inversões de onda T, distribuídos em derivações contíguas. Contudo, trata-se de outra armadilha, pois essas alterações podem estar presentes em quadros não isquêmicos! A onda T profunda, negativa e difusa pode ocorrer em injúria grave de sistema nervoso central, como hemorragia e edema cerebral. Já infradesníveis de ST podem decorrer, por exemplo, do padrão strain de sobrecargas ventriculares (esquerdas ou direitas), além do uso de digoxina.


Essa história tem também uma armadilha paradoxal: um infra de ST que represente oclusão coronariana completa e um supra de ST bifásico que indique oclusão coronariana incompleta e suboclusiva. Correspondem, respectivamente, ao sinal de “De Winter” e à síndrome de Wellens, indicando isquemia grave da região miocárdica anterior. Conhecer esses padrões eletrocardiográficos é essencial para o manejo de SCA.


E para encerrar, sem largar a polêmica, vale dizer que o “normal” nem sempre tranquiliza. Afinal, o eletrocardiograma normal não descarta coronariopatia aguda, certo?


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