Reflexões sobre o Processo de Identificações

Reflexões sobre o Processo de Identificações

O aumento da longevidade nos surpreende, transgredindo o padrão da cronologia das idades e empurrando a velhice para adiante. As pesquisas demográficas claramente demonstram isso (Camarano e Kanso, 2016). Assim, se queremos viver muito, podemos dizer, inspirados na poesia lusitana, que envelhecer é preciso, e morrer (não é preciso?) continua obrigatório.


O ser humano, como um ser distinto e único, é semelhante aos outros seres humanos e o seu percurso vital transcorre sobre um mesmo pano de fundo, comum a todos. Ou seja, vivemos e envelhecemos com os outros.


Na dimensão biológica, o avanço na idade, como dado isolado, não é sinônimo de adoecimento nem de chegada da morte. É sempre bom lembrarmos de que doença e morte são condições próprias dos seres humanos, em qualquer idade. Entretanto, existem evidências de que o envelhecimento celular humano torna o organismo mais suscetível a doenças, com repercussões também evidentes no sistema de saúde, pelo aumento da demanda exercida pela população idosa (Gravenstein, Fillit e Ershler, 2003).


A velhice, com a vulnerabilidade que a acompanha, nos aponta pelo menos duas possibilidades. Em uma primeira mirada, pode desmerecer a existência humana: para que viver muito se vou envelhecer, adoecer e morrer? Ou, ao contrário, pode impulsionar o ser humano para a descoberta de novas possibilidades, no fluxo incessante do vir a ser: para que sair de cena, se posso, sempre, transformar meu personagem?


Trajetória das identificações


O ser humano se constitui na trajetória das identificações. Ou seja, vivendo os processos psicológicos responsáveis pela assimilação de aspectos e atributos do outro, capazes de produzir, nele, continuamente, transformações em diferentes graus de intensidade, segundo aquele que foi o modelo (Laplanche e Pontalis, 2010).


A gestação e o nascimento de uma criança trazem expectativas, promessas e metas de conquista. Os pais idealizam o futuro dos filhos no embalo dos seus próprios desejos que, entretanto, se mostram para sempre insatisfeitos (Sathler, 1994, p.42)


Reconhecer os próprios desejos, para poder buscar meios de satisfação, requer um longo e laborioso trabalho de discriminação entre o que sou e desejo e o que querem que eu seja e deseje.


É esse o percurso das identificações que, ao longo da existência, o sujeito atravessa, reconhecendo-se ao mesmo tempo em que reconhece o outro à medida que é também reconhecido por esse outro. Assim, podemos dizer que, nesse percurso, transcorre o trabalho psíquico de o sujeito reconhecer-se nos seus próprios desejos, discriminando o que é seu e o que é do outro e, ainda, buscando meios de satisfação, embora jamais vá alcançá-la plenamente. Trata-se, aqui, da elaboração das perdas e das aquisições, que teve início na infância: na perda da crença na onipotência do outro e na aquisição da capacidade de escolha própria, ou seja, da sua autonomia.


No curso do envelhecimento, o ser humano é impelido a confrontar a desqualificação do corpo envelhecido que é marcado no social pelos estigmas da decadência, feiura, doença e aproximação da morte. É quando tem de proceder ao confronto da estrutura narcísica que se fixou na construção do seu corpo ideal, com a verificação realista dos limites inexoráveis que marcam o processo de envelhecimento (Messy, 1999).


A partir do século 20, a tarefa identificatória dos mais velhos se dificulta. A exaltação da juventude se inscreve no registro social da produção, reprodução, acumulação de riquezas e do consumo. Há uma lógica aí engendrada, de onde nascem os determinantes de formas de discriminação que descartam e excluem aquele que é velho e, por conseguinte, considerado improdutivo, decaído, feio e doente, não mais capacitado para atender às especificações exigidas aos jovens produtivos, vigorosos, belos e sadios (Birman, 1995).


De acordo com Messy (1999), na velhice, se desenvolve um processo de demolição do ideal do ego. Trata-se de uma noção da teoria freudiana que se refere à instância da personalidade que é resultante da convergência da idealização do ego e das identificações com os pais, com os seus substitutos e também com os ideais coletivos.


A expressão “ego feiura”, criada por Messy (1999), designa, justamente, esse ataque ao ideal do ego. Na incursão de Pacheco (2005, p.29) a esse discurso, encontramos:


Assim, na velhice, seria como se Narciso não conseguisse mais ver sua bela imagem refletida no lago, posto que, se congelado, não refletiria, ou distorceria a imagem desejada.


Atravessando um exaustivo processo de mudanças, o ser humano que chegou à velhice se percebe no conjunto das perdas de capacidades e na sua atualidade psicossocial de tornar-se idoso. Desse modo, ele próprio pode descuidar das suas possibilidades de autonomia, bem como pode desestimular-se para investimentos novos, assimilando, na autoimagem, os estereótipos sociais que abominam os mais velhos (Py e Scharfstein, 2001).


Na complexidade e sofisticação do mundo atual, observamos que a concretização do alongamento da existência se contrapõe à carência das condições de qualidade de vida e da valorização simbólica da velhice. Temos então um contexto facilitador da resposta defensiva do ser humano, expressa na recusa a identificar-se e reconhecer-se na sua atualidade de mulher velha ou de homem velho. Essa situação revela o medo da velhice fundido no medo da morte. Medo forjado no horror e na repulsa, que são instrumentos do meio social, produtores de uma representação negativa da velhice.


Referindo-se ao texto de Freud – Nossa atitude para com a morte –, Mannoni (1995, p.8) nos lembra de que não temos a representação da morte no inconsciente: “lá onde habita o desejo, o sujeito se crê imortal”.


Também não conhecemos a velhice antes de envelhecer. Velhice e morte, no entanto, se fazem presentes na ferida narcísica provocada pela frustração das ilusões de eternidade da beleza, de potência e da própria vida.


Particularmente no decorrer do envelhecimento, essas desilusões causam profundo sofrimento, porquanto o indivíduo se vê diante da irreversibilidade do seu processo de desenvolvimento. No entanto, são justamente essas desilusões que prescrevem, para ele, possibilidades mais realistas de concretização, que podem mantê-lo em ação, prosseguindo no seu projeto de vida, à procura do lugar de senhor das próprias decisões. Contudo, viver uma ilusão é imprescindível para o ser humano, tanto quanto viver a desilusão, na perda que frustra e provoca sofrimento. Todo esse processo é vital e assegura a existência do ser que envelhece, pautada em ganhar e perder, sofrer e gozar (Py, 2006).


Há, ainda, uma situação profundamente perturbadora que é o caso do idoso com doença incapacitante. As doenças que afetam a cognição dos idosos, particularmente as demências, aniquilam a sua condição de sujeito autônomo, destituindo-o do lugar de senhor da sua vontade e do seu poder de decisão. Nessa circunstância, o idoso fica à mercê de outra pessoa que assume a dificílima tarefa de decidir por ele, de lhe dedicar cuidado integral em tempo integral (Burlá, 2015).


Um idoso lúcido e orientado, mesmo com uma doença incapacitante, tem dupla dificuldade identificatória: uma trazida pelo avanço nos anos, que o consagra velho; e outra que requer a integração da doença, muitas vezes instaurando a dependência. Ambas o afetam, na construção contínua do ideal do ego.


Anteriormente ao adoecimento, é provável que esse idoso já sofresse os efeitos de uma velhice confundida com doença e deformidade, pela marca social negativa que assinala os velhos. Agora, a doença e a dependência vêm radicalizar os sentimentos de agravo ao ideal do ego, pela força com que acentua o que é considerado negativo no corpo envelhecido: incapacidades e feiura da velhice. Um idoso assim adoecido pode sentir-se como uma caricatura de si mesmo. Então, o mais grave no sofrido processo identificatório é a vinculação velhice-doença, que maltrata, deforma e incapacita.


Por fim, podemos dizer que o fato é que, na velhice, o ser humano prossegue envelhecendo no processo de transformações vitais a que todo o ser vivo está determinado. Como sujeito, ele se constitui na relação identificatória com o outro e essas transformações têm a ver com a possibilidade de ser reconhecido na sua diferença, em que, se há lugar para um juízo de valor, este seria o da valorização da singularidade do ser humano.


Referências bibliográficas


Birman J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. In: Veras RP (org.). Terceira idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Unati-UERJ, 1995, p.29-48.


Burlá C. A aplicação das diretivas antecipadas de vontade na pessoa com demência [tese de doutoramento]. Programa doutoral em Bioética, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto/Portugal, 2015.


Camarano AA, Kanso S. Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica. In: Freitas EV, Py L (eds). Tratado de geriatria e gerontologia 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Kogan, 2016, p.52-65.


Gravenstein S, Fillit H, Ershler W. Clinical immunology of aging. In: Tallis R, Fillit H. Brocklehurst’s textbook of geriatric medicine and gerontology. 6th ed. Edinburgh: Churchill Livingstone, p.113-124, 2003.


Laplanche J, Pontalis J-B. Vocabulário de psicanálise 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.


Mannoni M. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.


Messy J. A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice 2ª ed. São Paulo: Aleph, 1999.


Pacheco JL. Elos refeitos: aposentados contam e refazem suas trajetórias de vida. Campinas (SP): setembro, 2005.


Py L, Scharfstein EA. Caminhos da maturidade: representações do corpo, vivências dos afetos e consciência da finitude. In: Neri AL (org). Maturidade e velhice: trajetórias individuais e socioculturais. Campinas (SP): Papirus, 2001, p.117-150.


Py L. Envelhecimento e subjetividade. In: Py L et al. (orgs). Tempo de envelhecer: percursos e dimensões psicossociais 2ª ed. Campinas (SP): Setembro, 2006, p. 97-120.


Sathler J. Cuidados especiais com o idoso no ato cirúrgico. In: SBGG-RJ. Jornadas. Rio de Janeiro, 1994, p.42-43.


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